Picado por cobra: 'Andei 1 km com dor sem igual e temi perder a perna'
"A dor parecia uma cãibra muito forte. Nunca senti algo igual." Dessa forma o lavrador Cícero José de Oliveira define os momentos seguintes após ser picado na perna esquerda por uma surucucu-pico-de-jaca, em meio à floresta amazônica, no município de Castanho (AM).
Cícero teve de esperar quatro dias por socorro. E, para piorar, horas antes do resgate, estava sem comida e sem água.
Ele conta que seguia para casa, por volta das 15 horas do dia 26 de outubro, quando foi surpreendido pela cobra —apontada pelo Instituto Butantan como a maior serpente peçonhenta das Américas.
"Estava indo em direção à minha casa pela selva e, do nada, levei a picada. Só depois avistamos a serpente, que tinha quase 1,5 metro de comprimento", conta ele, ao UOL. Cícero estava acompanhado de outras três pessoas.
A primeira reação foi correr. "Só pensei em andar o mais rápido possível para me afastar. Após 1 km percorrido mais ou menos, não suportei mais, a dor era muito forte, mas a vontade de ficar acordado era maior. Aí meu parceiro foi atrás de socorro."
Cícero conta que, após a picada, perdeu muito sangue, mas logo o sangramento parou. Depois disso, sua perna ficou paralisada.
Alguns companheiros saíram para pedir ajuda, enquanto outros ficaram. Na mata, ele não ficou sozinho em nenhum momento.
Enquanto aguardava socorro, Cícero pensava nas consequências da picada peçonhenta.
"Não tive medo de morrer, mas de ficar com alguma sequela, como perder a perna", disse ele. "Passou pela minha cabeça que ninguém me buscaria naquela mata e eu teria de ficar por lá mesmo", afirmou.
"Pensei que não conseguiria mais cuidar do meu sítio, que é um sonho para mim de criança."
A ajuda chegou na segunda-feira (30) à tarde, por volta das 18 horas.
"Cícero estava lúcido e com a perna muito inchada. Pensei que poderia estar preta. Neste caso, teríamos de levá-lo ao hospital e amputá-la", explicou Jefitte Cordeiro Ambrósio, brigadista do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
O brigadista, que é do Rio e estava na região para atuar no combate a incêndios na floresta, foi designado para resgatar Cícero junto com outro colega técnico em enfermagem, José Augusto Antunes.
Ao todo, eles tiveram de percorrer cerca de 17 km mata adentro para chegar ao local, o que levou cerca de 7 horas.
"Estavam sem água desde as 9 da manhã; e chegamos só no fim de tarde", explicou o brigadista. Lá, ele aplicou soro antiofídico (contra picada de cobra) e analgésicos. Em uma escala de 0 a 10, Cícero dizia que sua dor era 9.
Após a medicação, oscilava entre 2 e 5.
Segundo o brigadista, Cícero só não estava pior porque tinha tomado um remédio usado por agricultores para tratar animais picados por cobras.
Com menos dor, o lavrador picado foi carregado em um esquema de revezamento entre cinco pessoas, para percorrer 17 km mata adentro até uma estrada, de onde foi levado para um hospital.
No dia 31 de outubro, foi internado e ficou por dez dias hospitalizado. Cícero teve alta nesta quinta-feira (9), sem graves complicações. Agora, continuará um tratamento em casa com fisioterapia na perna, pois ainda não consegue pisar no chão.
Como é a surucucu-pico-de-jaca
Está na Amazônia e Mata Atlântica. A surucucu-pico-de-jaca pertence à espécie Lachesis muta e pode ser encontrada na Amazônia e em regiões da Mata Atlântica, como os brejos de altitude no Ceará.
Cauda com espinho e cores. Ela possui uma coloração muito característica, alaranjada, com manchas escuras no dorso, e apresenta um espinho no final da cauda. Em situações de ameaça, a surucucu agita a cauda entre as folhas, criando um som de advertência com o intuito de dissuadir eventuais predadores.
Escamas ásperas explicam o nome. "Seu nome popular é porque ela tem escamas ásperas que lembram a casca de uma jaca", explicou ao UOL Cláudio Machado, biólogo e divulgador científico do Canal Papo de Cobra, no YouTube.
Sua ocorrência se dá justamente em locais evitados pela cascavel, habitando o interior da mata úmida. Ela é muito dependente da floresta e possui atividade noturna e hábito terrestre.
Cláudio Machado, biólogo e divulgador científico
Reprodução peculiar. Das cobras peçonhentas no Brasil, além das corais, a surucucu-pico-de-jaca é a única que coloca ovos. As fêmeas põem seus ovos em aberturas de troncos caídos ou em abrigos escavados no solo por animais mamíferos.
Filhotes usam 'dente de nascimento'. Quando os filhotes nascem, eles rompem a casca dos ovos usando um pequeno apêndice no lábio, conhecido como "dente de nascimento", para cortar a casca do ovo.
Bote com salto. Suas presas ultrapassam dois centímetros de comprimento e seu bote pode chegar a dois metros de distância. Para atingir a presa, ela consegue dar um salto de, no mínimo, um metro de altura.
Come roedores. Da mesma forma que a urutu, a surucucu se nutre estritamente de mamíferos, frequentemente escolhendo roedores de pequeno e médio porte, como ratos e camundongos, animais que se alinham bem com seu peso e tamanho.
Peçonha perigosa
A peçonha da surucucu-pico-de-jaca é altamente tóxica. Ele pode causar reações semelhantes às da jararaca, incluindo hemorragia, necrose e insuficiência renal. Todo ano ocorrem cerca de 30 mil acidentes no Brasil, mas apenas cerca de 3% são causados pela surucucu, segundo o biólogo.
Causa uma atividade inflamatória, com dor, inchaço e formação de bolhas. Normalmente os acidentes por surucucus são graves, também causando náuseas, vômitos e dores abdominais e sangramentos. Muitas vezes o acidentado pode desmaiar, pois o veneno causa diminuição dos batimentos cardíacos.
Cláudio Machado, biólogo e divulgador científico
Atendimento urgente. A pessoa mordida por uma cobra dessa espécie deve ser conduzida o mais rapidamente possível para uma unidade hospitalar que possua soro antiofídico. Segundo Machado, é importante manter a calma, elevar o membro acidentado e lavar o local com água e sabão, se possível.
É importante em caso de acidentes nunca fazer garrotes ou torniquetes, e nem colocar substâncias como pó de café e alho no local atingido. Também nunca se deve cortar e apertar o local na tentativa de retirar o veneno.
Cláudio Machado, biólogo e divulgador científico
O único tratamento eficaz é o uso do soro antibotrópico-laquético, distribuído nos hospitais públicos por meio do SUS. O número de ampolas utilizado está relacionado à quantidade de peçonha inoculada e à gravidade do acidente —e isso é determinado pela equipe médica.