Em meio à onda de calor, acesso a água é restrito em prisão, diz Defensoria
Presos e familiares que visitam a Penitenciária de Getulina, no interior de São Paulo, têm acesso restrito à água potável e dificuldade para manter os alimentos sem estragar. A informação faz parte de relatório da Defensoria Pública do estado e obtido com exclusividade pelo UOL. O governo do estado nega.
O que aconteceu
Não há água potável disponível para visitantes e o banheiro destinado a eles foi flagrado em condições precárias, segundo o documento. A inspeção foi realizada em 12 de novembro, quando os termômetros no interior passaram dos 40ºC. Novembro bateu recorde de calor para o mês no planeta.
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Também falta água própria para consumo dos privados de liberdade, conforme relatos dos familiares. "Em entrevista no dia da inspeção, eles relataram que não há água potável nos pavilhões, onde as visitas são realizadas", diz Mariana Borgheresi Duarte, coordenadora do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo. A equipe não entrou nas celas.
O relatório aponta que não há "estabelecimento comercial ou vendedores ambulantes de água e alimentos, tampouco bebedouro" perto da unidade e ainda que há racionamento dentro da penitenciária. "Recebemos muitas denúncias e nos chamou a atenção a gravidade dos relatos", diz a defensora.
A inspeção indicou que os espaços cobertos para familiares aguardarem o início da visita são pequenos (21 metros quadrados) e não há bancos suficientes para idosos e mulheres com crianças. De acordo com a direção do presídio, a unidade recebe cerca de 100 visitantes por dia aos fins de semana e tem 35 funcionários por turno.
A Secretaria da Administração Penitenciária afirmou que "toda a água utilizada na Penitenciária de Getulina é potável". A pasta diz que os presos têm acesso a bebedouros nas áreas de uso coletivo dos pavilhões, "além de torneiras nas celas", e que a água passa por análise periódica por uma empresa especializada.
Além da pena de fome, é imposta a pena de sede. Quando tem água, não é potável, não existem bebedouros, eles têm que usar da torneira e não há recipiente para armazenar a água. A tortura se dá pela impossibilidade ao acesso.
Mariana Borgheresi Duarte, coordenadora do Núcleo de Situação Carcerária
Calor e longas filas estragam alimentos
A inspeção apontou que alimentos levados por familiares se estragaram rapidamente com o calor e as filas. Os visitantes chegam por volta das 6h e entram na unidade às 11h. Alguns relatam que conseguem entrar somente às 13h.
Mulheres deixam de se alimentar, beber água e fazer uso de remédios de rotina com receio de que sejam detectadas alterações nos scanners corporais ou de que as imagens sejam consideradas inconclusivas. "Uma mulher disse que havia se alimentado pela última vez às 22h do dia anterior, que estava em jejum há nove horas", afirma Mariana.
O relatório aponta ainda que agentes "costumam despedaçar a comida com garfo e colher". Além disso, visitantes são impedidos de deixar tigelas e recipientes com os presos para que armazenem água e alimentos — mesmo com o racionamento de água na unidade.
Há abuso na seleção dos alimentos que não entram na penitenciária, diz o documento. "Quando a quantidade de alimentos levados pelos familiares ultrapassa a permitida, o pacote todo é descartado. Com isso, muitos levam menos do que o permitido", afirma a defensora.
Lençol molhado para resfriar cela
O calor intenso tem feito presos molharem lençóis e pendurarem nas grades para resfriar as celas. O relato é de uma mulher de 53 anos que prefere não se identificar e visita quinzenalmente o filho, de 23, na unidade. "Novembro foi um dos piores meses", diz. "Mas os cortes [no abastecimento] estão sendo frequentes. E não deixam a gente entrar com garrafas."
Ele dorme no piso ao lado do vaso sanitário e divide a cela com outros 32 presos, segundo a mãe. "O banheiro e o lavatório da pia estão entupidos. É onde eles fazem tudo: higiene, lavam alimentos. Bebedouro, sem chance."
O presídio, localizado em área rural de difícil acesso, tem capacidade para 857 pessoas, mas tem 1.257 presos — superlotação de 46,67%. Para chegar ao local, a mulher deixa a cidade de Franca com destino a uma pensão em Ribeirão Preto, em uma viagem de cerca de uma hora (90 km). De lá, pega outro transporte até Getulina, que são mais de 140 km, e chega por volta da 0h.
Às 5h do dia seguinte, ela está em frente ao portão do presídio para entrar na fila da visita. "Parei de levar coisas que estragam facilmente", conta. "Como não gostei de beber água lá, levo uma garrafa de água e duas de refrigerante. Mas quando a gente consegue entrar, tudo já está quente."
A gente pega água da torneira do lavatório ou do cano do chuveiro. Tem um tanque com torneira no pátio. Mas tem canos expostos com esgoto vazando nas paredes das celas. Fico enojada, é horrível. São muitas penas, de sede, fome.
Mãe de preso que cumpre pena em unidade de Getulina
Seios à mostra e bebê em esteira
A equipe de inspeção viu quando uma mulher que foi à penitenciária para a visita íntima teve que abrir a boca, mostrar a língua, os sapatos, a parte interna da calça e teve o cabelo manuseado — antes de entrar. "Elas [mulheres] disseram que em dias que a Defensoria não estava presente, tiveram que levantar a blusa e mostrar os seios", diz Mariana.
Na sala da revista, há uma mesa com absorventes e fraldas. As mulheres que estão no período menstrual são obrigadas a trocar o absorvente pelo item da penitenciária na frente de funcionários.
Crianças e bebês também são submetidos ao equipamento de revista corporal. A equipe acompanhou a passagem de um bebê pelo scanner, que foi colocado na banheira. "Pela incompatibilidade do tamanho, ficou extremamente desconfortável, com o pescoço dobrado e chorando durante o processo", diz o relatório.
O que diz a SAP
A Defensoria Pública enviou à direção do presídio um ofício para que sejam instalados bebedouros para visitantes. Foram cobradas cadeiras para visitantes idosos e com crianças de colo e providências no caso de crianças submetidas ao scanner corporal e quanto às revistas consideradas vexatórias.
Ao UOL, a pasta disse que há bebedouros e banheiros para visitantes na entrada da unidade. "Há um processo de compra de novos bebedouros para essas áreas", informou, em nota. "Neste período de temperaturas mais elevadas não houve registro de problemas com os reeducandos, que têm disponível água de forma contínua".
A secretaria informou que a estrutura dos presídios "assegura condições salubres de encarceramento, como é o caso das celas ventiladas, que contam com arejamento e possibilitam a circulação de ar, inexistindo problemas de aquecimento". A SAP disse que segue determinações da OMS e que na unidade não há racionamento, embora a equipe de inspeção tenha ouvido relatos diferentes.