'Só vi fogo': ela teve 60% do corpo queimado em acidente com gasolina
A empreendedora e professora de educação física Gabriela Schell, de 28 anos, teve 60% do corpo queimado em 2013 depois de um acidente com gasolina na casa do ex-namorado em Dourados (MS). Na pandemia, ela escreveu um livro detalhando o que aconteceu e como conseguiu seguir na profissão dos seus sonhos. Ao UOL, ela conta sua história.
'Não pensei que daria problema'
"Estava na casa do meu namorado da época e fomos limpar a moto dele. Lavamos, secamos. Quando ele foi tentar ligar, não conseguiu dar partida e me perguntou: 'será que tem água na gasolina?'. E eu disse que deveria ter.
Foi quando ele teve a ideia de passar a gasolina do tanque para o balde, do balde para o chão e acender um isqueiro. Na hora, não passou pela minha cabeça que daria problema. Para mim, era só um experimento para ver se tinha água misturada na gasolina.
Fiquei posicionada de frente para ele, não fiquei longe. Em um milésimo de segundo, passou uma cena na minha cabeça. Só vi o fogo e gritei 'não', mas ele já tinha batido o isqueiro. Foi tudo muito rápido.
O fogo veio direto para minhas pernas e tomou conta de toda a varanda. Me desesperei e comecei a me abanar, só que o oxigênio alimenta o fogo —então, as chamas só aumentavam.
'Não senti dor'
Só conseguia pensar que precisava me apagar para não morrer carbonizada. Meu namorado também pegou fogo, mas ele correu para fora e se jogou no chão, e conseguiu apagar o fogo. Eu poderia ter ido atrás dele, mas não fui.
Resolvi correr para dentro da casa dele e só gerei mais problemas. Me agachei no chão e continuei me batendo. O fogo começou a subir pela minha mão, braço, pescoço. Quando chegou no rosto, minha sogra apareceu e conseguiu me apagar com um cobertor.
Acho que isso não durou nem um minuto, foi realmente muito rápido. A todo momento eu reflito sobre isso: se ela demorasse um pouco mais, será que me encontraria viva?
Não senti dor na hora, nem um pouco. O acidente foi mais ou menos meio-dia e até a madrugada seguinte eu não senti nada de dor.
Eu conversava com as pessoas, via que estava queimada, toda enfaixada, cheia de bolhas, mas não sentia dor. Do joelho para baixo, tive queimaduras de terceiro grau. Tive 60% do meu corpo queimado.
Depois que minha sogra me apagou, me levaram a um hospital da cidade e fui transferida para Campo Grande.
Até chegar à capital e ir para o CTI, lembro de tudo com muitos detalhes. Depois que fui internada de fato, só tenho flashes e sei de situações porque me contaram.
'Sentia perna queimar e coçar'
Fiquei quatro meses internada e fui três vezes para a terapia intensiva: a primeira foi quando eu cheguei, a segunda foi porque peguei uma bactéria, e a terceira, por causa da água no pulmão depois de tanto tempo deitada. Não conseguia me alimentar bem no hospital e fiquei um bom tempo com sonda.
Fiz muitas cirurgias de enxerto que até perdi a conta. Meu corpo não estava aceitando mais minha própria pele, rejeitava. Tive de reaprender a andar, porque por quatro meses eu só me mexia com ajuda da cama.
Como minha perna queimou mais, nem conseguia ficar de pé porque sangrava muito. Quando saí do hospital, sentia ela queimando e coçando. O sangue descia para as extremidades, mas o músculo da panturrilha não conseguia bombear de volta. Era um minuto de pé e já precisava deitar, tinha vertigem.
Foi um processo muito lento. Primeiro, suportar ficar em pé. Segundo, aprender a ter equilíbrio de novo. Depois, dar os primeiros passos. E aí comecei a andar até a esquina, andar distâncias maiores.
Três mudanças ao mesmo tempo
Fazia faculdade de educação física e o acidente aconteceu enquanto estava no primeiro ano. Muita gente me falou para trocar de curso, que não fazia mais sentido. Mas eu tinha muito claro no meu coração que era o que eu queria.
Precisei transferir a faculdade de Dourados para Campo Grande por causa do tratamento. De fevereiro a julho, minha mãe morou comigo. Em agosto, quando voltei para a faculdade, ela foi embora.
Fiquei quatro anos da faculdade andando dez quadras para ir e voltar. Quando chegava, precisava esticar as pernas porque pinicavam muito. Essa era minha rotina.
Além de viver o processo de reabilitação e voltar para a faculdade, passei a morar sozinha. Foram três mudanças ao mesmo tempo.
Só me senti 100% recuperada quatro anos depois, quando terminei a faculdade. Na semana em que peguei meu diploma, consegui um emprego para dar aula em escola: precisaria trabalhar terça e quinta o dia inteiro na quadra, em pé.
'Quase pedi para sair'
Na escola, era uma aula atrás da outra e elas exigiam mobilidade. A única parada que eu tinha era na hora do almoço. Lembro que, na primeira aula, quase pedi para sair. Minhas pernas doíam muito.
Vivia uma aula por vez. Pensava: 'vou finalizar essa aula e, se eu conseguir, vou finalizar a próxima também'. Comecei a criar situações. Passava os exercícios para os alunos e ficava correndo também, me movimentando, para forçar minha panturrilha a bombear sangue.
Quando terminei o dia, decidi que não pediria para sair. Se eu tinha finalizado aquele primeiro dia, os outros seriam mais tranquilos. Depois disso, passei a ficar mais ativa, comecei a jogar badminton e pedalar.
E foi no badminton que conheci o homem que é meu marido, pai dos meus filhos. Vamos fazer sete anos casados.
'Precisava contar minha história'
Tenho a ousadia de falar que, às vezes, estou melhor do que muita gente que não se queimou. Aprendi que a limitação está na nossa mente e a criar soluções.
Passei anos com muita vergonha de falar em público sobre o que aconteceu, mas, quando meu acidente completou 7 anos, senti que eu tinha um propósito.
Precisava ajudar as pessoas contando o que vivi e decidi escrever meu livro. As pessoas podem aprender muitas coisas sem precisar passar pelo o que passei. Quero levar essa mensagem para mais longe."