Voluntários que recuperaram armas foram chamados para salvar crianças; ouça
Uma equipe de voluntários diz ter sido enganada e coagida a resgatar mais de 3.000 armas do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, em meio às enchentes que afetam o estado. A equipe disse que foi chamada para "resgatar crianças".
O que aconteceu
Nicolas Vedovatto, um dos voluntários, disse ao UOL que foi chamado para resgatar crianças na região metropolitana de Porto Alegre. Ao chegar em um ponto de encontro, foram convencidos a participar, na verdade, de um resgate de uma carga de armas milionária da Taurus.
Taurus nega participação de voluntários. Ao UOL, a empresa disse que todos que resgataram os artefatos eram do corpo de funcionários da empresa.
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A Polícia Federal desconhecia as pessoas que iriam resgatar as armas. Em nota, a PF disse que coube à empresa contratar homens para participar da logística e que apenas fez a segurança do local.
A equipe reuniu barcos, apetrechos e até brinquedos para o resgate. De acordo com Vedovatto, o grupo estava atuando em diversas ações para salvar pessoas e animais, e que o grupo tem conhecimento em águas e uso de embarcações — que por isso foram convocados para a "missão". O caso foi divulgado pelo site "ABC+" e confirmado pelo UOL.
Eu fiz o melhor que eu pude para recrutar pessoas. Mobilizei médica, ela deixou de salvar outras pessoas para ir empurrar caixa de arma. A gente acreditou realmente que era criança. Depois de já ter salvado várias pessoas, a gente foi coagido e enganado. Acreditamos que era algo muito sério e muito secreto, que precisavam da gente. A gente sente medo por ter revelado o absurdo que aconteceu. aparecemos em rede nacional. A Taurus não é uma empresa de ursinho de pelúcia, é de armas.
Nicolas Vedovatto, voluntário
Um pedido de clamor
Em um grupo de WhatsApp, um homem pede socorro. Ao saber da mobilização do grupo em resgates complexos, narra Vedovatto, um indivíduo identificado como Michel Rodrigues apareceu pedindo ajuda para resgatar crianças.
"Missão séria", comentou. No WhatsApp, Rodrigues disse que tinha recebido um pedido de socorro de uma pessoa que sabia da localização de crianças ilhadas. De acordo com ele, a localização não poderia ser exposta para não gerar uma espécie de engarrafamento de barcos. "Tudo sigiloso", disse.
Suposto intermediador alega que também é vítima. Procurado pelo UOL, Michel Rodrigues disse que também foi convocado para auxiliar na busca de crianças e aponta Leonardo Godoy como o líder da "operação de resgate". Rodrigues disse que não foi ao aeroporto e indicou que a reportagem fosse atrás de Godoy.
Eu fui coagido, todos nós fomos enganados. A gente participava daqueles grupos ali de resgate (...) Mas o sorriso dos meninos nos vídeos do aeroporto mostra que eles não foram forçados.
Michel Rodrigues, suposto intermediador
A operação
"Segunda demanda mais importante". Leonardo Godoy se apresenta como empresário nas redes sociais. Ele diz estar na linha de frente de diversos resgates no Rio Grande do Sul. Nicolas Vedovatto e Michel Rodrigues o identificam como chefe da suposta operação que tiraria crianças de um ponto crítico da região. Godoy pediu barcos para o grupo por meio de Rodrigues, segundo voluntário.
É importantíssimo, eu preciso deles, faz esse clamor aí (...) Três barcos sete da manhã
Leonardo Godoy, suposto líder da operação de resgate
O voluntário diz ter desconfiado e perguntado novamente a localização das crianças. O suposto intermediador disse que também não sabia, que foi informado apenas do ponto de encontro para partida. Vedovatto e equipe moram no litoral gaúcho, e teriam que se deslocar até a região metropolitana.
A gente não sabe para onde é o resgate, se é Canoas ou Porto Alegre. Mas vocês vão chegar na [avenida] Victor Barreto que é em Canoas, bem fácil acesso a BR
Michel Rodrigues, suposto intermediador da ação
Acho que os bombeiros vão estar junto...quando chegar em Canoas vão ser direcionados
Michel Rodrigues, suposto intermediador da ação
Vocês vão chegar lá e podem encontrar a Viviane (sic) ou o próprio Leo Godoy
Michel Rodrigues, suposto intermediador da ação
Nicolas e os cinco amigos foram ao ponto de encontro para partir ao resgate. Chegando no posto de gasolina de Canoas, ao invés dos bombeiros, encontraram Godoy e uma mulher identificada como Vivian Rodrigues - que se apresentou como funcionária da Taurus.
"Ela disse: 'não são crianças, na verdade, são armas'", comentou o voluntário. No posto, os amigos alegaram que resistiram à ideia de buscar a carga bélica, mas a mulher insistiu falando que a ajuda deles iria "salvar muitas vidas". Ela finalizou dizendo que agora eles "sabiam demais". A equipe acabou indo.
Godoy e Vivian comunicaram o envolvimento da PF na busca. Segundo relato de Vedovatto, o próximo ponto de encontro seria numa base da Polícia Rodoviária Federal. Ainda de acordo com ele, isso teria "tranquilizado" parte da equipe.
A dupla por trás do resgate já gravou um vídeo junto em uma rede social. Nas imagens, Godoy e Vivian comemoram a arrecadação de caminhões com água e pedem pix para mais doações. Ao UOL, Nicolas Vedovatto reconheceu ambos por imagens.
O UOL tentou contato com Vivian por telefone e mensagem. A suposta funcionária da Taurus atendeu a ligação, mas desligou após identificação da reportagem. Nas tentativas seguintes, a ligação foi direto para a caixa postal. O espaço segue aberto para manifestação.
A Taurus não informou se a mulher faz parte do quadro de funcionários. O UOL solicitou uma lista dos participantes do "resgate das armas", mas a empresa não quis fornecer. Um perfil do Linkedin, cuja foto também foi reconhecida por Vedovatto, mostra Vivian Rodrigues como técnica de processos da Taurus no Rio Grande do Sul.
Partiram para "nova missão"
Da base da PRF, à beira da Freeway, já ciente da "nova missão", a equipe partiu rebocando um barco com ditos funcionários da empresa armamentista.
Chegou um ponto do trajeto a Vivian falou para guardar os celulares e não fazer movimento brusco por conta dos snipers que estavam nos acompanhando
Nicolas Vedovatto, voluntário
Equipe chegou e encontrou homens da PF. Segundo o voluntário, os agentes pareciam não saber do envolvimento de civis no caso. Após o estabelecimento da equipe, a PF e os voluntários foram até o armazém do arsenal e arrombaram a porta.
O UOL apurou que a PF não fez a conferência de quem participava do resgate da carga sensível. A averiguação é praxe em ocorrências como essa, mas por conta da tragédia climática, não foi realizada.
Não há inquérito de investigação sobre conduta dos agentes. Os voluntários que alegam terem sido coagidos, ainda não registraram boletim de ocorrência.
Vedovatto diz que sua equipe estava exposta, sem nenhuma segurança e com medo do que poderia acontecer. Ele complementa dizendo que não receberam coletes à prova de balas e nem sequer sabiam o destino do arsenal. Eles ajudaram até na organização das caixas para evitar o contato com a água.
O voluntário disse que no início estava tudo "desorganizado", e que até chegaram a levar parte da carga sem escolta alguma até um caminhão.
Os voluntários só souberam da gravidade dias depois, após uma reportagem de TV mostrá-los carregando o conteúdo sensível. Vedovatto disse que enfrentou piadas após o desacerto e que todos tiveram seus rostos divulgados.
Agora, a equipe teme ser alvo de criminosos e retaliações da empresa, após o caso ganhar repercussão nacional. Os amigos estudam processar os envolvidos.
Isso nunca foi passado para nós. Fomos salvar vidas, não temos proteção nenhuma. Agora estamos com medo. Aquela situação não foi feita para civis. É um absurdo.
Nicolas Vedovatto, voluntário