Mandatos coletivos têm choque de realidade após chegarem ao poder
Do UOL, em São Paulo
04/08/2024 12h00Atualizada em 05/08/2024 14h24
Os protestos que varreram o Brasil em 2013 transformaram a política nacional: enquanto a extrema direita abriu caminho para a presidência cinco anos depois, uma militância com raízes em movimentos sociais alçava negros, mulheres e LGBTQIA+ às casas legislativas. Após o sonho de "hackear o sistema", porém, esses "mandatos ativistas" terminam suas primeiras legislaturas precisando lidar com diversas frustrações.
O que aconteceu
A conclusão é do estudo "Mandatos ativistas no Brasil: um diagnóstico". Patrocinada pela Luminate, a ONG Nossas entrevistou 30 mandatos ativistas municipais, estaduais e federais de 11 estados e nove partidos. PSOL (51,6%) e PT (32,2%) concentram a maioria dos mandatos, alguns coletivos — quando um grupo de ativistas se candidata, embora apenas o nome de um deles apareça na urna e somente ele seja eleito de fato.
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Os primeiros grupos começaram a se organizar em 2016. O movimento #OcupaPolítica elegeu suas primeiras bancadas em 2017, como a Gabinetona, em Belo Horizonte, e a Bancada Ativista, em São Paulo, no ano seguinte. Em 2019, o movimento chegou a reunir 16 mandatos em todo o país.
Os mandatos ativistas chegam nas Casas Legislativas na perspectiva de 'hackear o sistema', invertendo a lógica da política institucional.
Trecho do estudo
Os ativistas que emergiram em 2013 contestavam o sistema político. "Questionou-se instituições, governantes, serviços públicos; as pautas foram se entrelaçando num mosaico", diz a ex-deputada federal Áurea Carolina (PSOL), uma das primeiras parlamentares ativistas e uma das idealizadoras da pesquisa. "Dali, é possível puxar um fio de trajetórias de lideranças populares."
Hoje deputada federal, Erika Hilton (PSOL-SP) integrou um mandato coletivo. Ela foi eleita deputada estadual por São Paulo em 2018 pelo Bancada Ativista, um grupo de nove pessoas.
Esses mandatos assumiram o risco de "compartilhar o poder". "Não tínhamos referências do que é esse exercício compartilhado do poder numa sociedade tão violenta", diz Áurea, que foi do Gabinetona (MG).
Até os salários precisam ser negociados entre os eleitos em um mandato coletivo. Como apenas um nome é eleito vereador ou deputado, os coparlamentares são contratados como assessores em cargos comissionados. "Os covereadores são alocados em cargos de assessores e nós seguimos a tabela salarial que a própria Câmara Municipal estipula", explica a vereadora Juliana Curvelo (PSOL), a porta-voz do Ativoz, primeiro mandato coletivo de Osasco, na Grande São Paulo, que tenta a reeleição este ano com mais três covereadores.
No coletivo Luiz Gama, que tenta se eleger em São Paulo, o acordo é o mesmo. "Se formos eleitos, cada um vai receber de acordo com seu cargo no gabinete", diz o candidato a covereador Jean Carlos Corrêa (PSOL). "Eu vou receber como chefe de gabinete, o outro como assessor parlamentar, e assim vai."
A necessidade de decisões compartilhadas é um desafio extra. "Isso traz um nível de trabalho e de exigência muito maior do que qualquer mandato convencional", afirma Áurea.
A parlamentar admite certa ingenuidade dos grupos. "Na minha candidatura a gente falava em recuperar esse encantamento com a política", diz. "Quando a gente vai vendo a tranqueira como ela é, a dura política, talvez a gente perca um pouco desse brilho no olhar."
Do sonho à frustração
Para formar suas equipes, os parlamentares ativistas contratam seus assessores de movimentos sociais. Eles ocupam os cargos comissionados, os populares "cargos de confiança". "Sem direito a FGTS ou seguro desemprego, com uma jornada de trabalho que não respeita hora extra, a grande maioria dos profissionais que formam as equipes de mandatos passaram parte da militância defendendo direitos que lhes são negados", diz o estudo.
Muitos militantes não se adaptaram à necessidade de "estabelecer coordenações, núcleos, funções e horários". "Uma equipe sem experiência vulnerabiliza o mandato e fragiliza a parlamentar", disse uma deputada que teve seu nome mantido em sigilo pelo estudo, assim como todos os entrevistados.
Salário ruim e acúmulo de funções precarizam as relações de trabalho. Nas câmaras municipais de cidades com poucos habitantes sequer existe verba para a equipe, e muitos parlamentares recorrem a voluntários. Quando o salário na cidade grande é bom, o "acúmulo de funções e dedicação exclusiva não compensam", afirma um assessor parlamentar.
A pressão e a desorganização adoecem e expulsam militantes. "A falta de organização gera gatilho de saúde mental", declarou um chefe de gabinete. "Assessoria tem vínculos empregatícios precários, o que nos leva a uma relação difícil com os mandatários", diz outro.
As altas expectativas frustram os mandatos e seus apoiadores. Os movimentos sociais, que apoiaram as candidaturas, esperam ver suas atuações ganharem espaço por meio dos eleitos. "A mandatária ou o mandatário entra na casa legislativa com todo o gás, com muitas propostas e pautas e eis que se depara com a burocracia e os limites naturais da função", diz o estudo.
Tinha reunião toda segunda-feira, mas era apenas tarefa e cobrança. A gente trabalhava coisa de 14 horas por dia. Equipe toda adoecida, todos no psiquiatra, tomando remédios.
Declaração de um membro da Banca Ativista (SP)
Ninguém do mandato trabalhou com política antes, então há algumas dificuldades de relacionamento interno e externo, além da dificuldade de leitura de cenário, o que acaba centralizando em mim quase todas as decisões.
Depoimento de uma parlamentar
Sempre há relatos de dificuldades entre coparlamentares [nos mandatos coletivos]. Seja em função de prioridade de pautas, da distribuição dos recursos, seja na gestão das equipes.
Trecho do estudo
Fazer campanha coletiva é muito mais fácil do que fazer mandato coletivo.
Depoimento de um parlamentar
Assédio e humilhação
Esses mandatos inovaram os parlamentos ao proporem novas discussões. Temas como direito à infância, trabalho materno remunerado, direito das pessoas trans e racismo "chegam às sessões plenárias pelas mãos destes mandatos".
A rejeição a essas pautas e ao perfil popular dos ativistas são o gatilho para a violência política. Há relato de membros das equipes impedidas de entrar no próprio local de trabalho, "silenciamento no plenário, intimidação e deslegitimação das pautas". A violência política foi considerada o problema mais difícil enfrentados por esses mandatos.
Mulheres e negras sofrem mais. "A vereadora (...) faz muitos enfrentamentos por ser mulher e isso incomoda os demais vereadores", diz uma assessora. "Tentamos atender as demandas que nos são encaminhadas, mas tem coisa que sequer chega à votação porque alguns vereadores nos enxergam somente como ferramentas de um partido, e não a voz de uma comunidade que nos elegeu."
Os parlamentares homens (...) se tornam desafiadores porque precisamos fazer o que eles querem, senão somos humilhadas e ridicularizadas por acharem que somos incapazes do local que estamos (mandato), só somos parlamentares para votar com eles.
Depoimento de uma parlamentar
É um grande desafio ser uma parlamentar negra e defensora dos direitos humanos em uma casa ainda machista e branca, composta por herdeiros da política. O racismo e o machismo tentam a todo momento desmobilizar as ações e desmotivar nosso trabalho.
Depoimento de uma parlamentar
"Precisamos de tudo"
O estudo perguntou o que precisa ser feito para melhorar o mandato. "Precisamos de tudo" e "não sei definir" foram algumas das respostas mais ouvidas. Outros destaques foram: mais tempo para reuniões internas, melhor divisão do trabalho na equipe, saúde mental, mais recursos para aumentar a equipe e para realizar.
30% das respostas reclamam da ausência de apoio dos próprios partidos. Até as organizações sociais ajudam pouco. "O que demonstra uma percepção de certa fragilidade do mandato quanto às articulações e mobilizações, e consolidação de base", afirma o estudo.
54,8% dos mandatos recorreram a assessorias externas. "O trabalho de bastidor realizado pelas organizações por vezes se assemelha à função de assessoria, por vezes faz a tarefa que deveria ser dos partidos", diz o estudo. O Legisla Brasil, por exemplo, se especializou em capacitar profissionais para trabalhar em mandatos.
Coletivos criam lideranças
Disputando uma vaga de vereadora em São Paulo, Chirley Pankará (PSOL) iniciou na política em um mandato coletivo. Em 2018, ela integrou a Bancada Ativista, na época sob a liderança de Mônica Seixas (PSOL). Nove pessoas integravam a equipe do mandato: além de Mônica e Chirley, Erika Hilton, Anne Rammi, Paula Aparecida, Jesus dos Santos, Fernando Ferrari, Claudia Visoni (PV-SP) e Raquel Marques.
Do mandato coletivo, derivaram candidaturas individuais. Hoje, Erika Hilton é deputada federal, enquanto Chirley e Claudia tentarão ocupar a Câmara Municipal de Vereadores da capital paulista nas eleições deste ano.
"Deu certo e depois cada um trilhou o seu caminho." Para Chirley, as pautas da Bancada Ativista sustentam hoje as candidaturas individuais, depois que os integrantes ganharam experiência política. "Depois da experiência em coletivo, prefiro seguir individualmente, com a pauta indígena."
Bancada Ativista enfrentou problemas internos. Em 2021, após três anos de mandato, Mônica Seixas pediu licença médica para cuidar da sua saúde mental. Como a legislação não reconhece um mandato coletivo, foi um suplente do partido dela quem assumiu o cargo durante os 120 dias de afastamento.
A parlamentar diz que adoeceu diante das dificuldades. "A política é adoecedora, o mandato coletivo que eu tinha era um agravante", explica Seixas. Parte dos problemas surgiram quando um dos codeputados decidiu mudar de sigla. "Na inocência, questões importantes foram julgadas como minúsculas e não debatemos antes do problema acontecer", afirma ela. "Só funciona assim, deixando a vaidade de lado em prol do coletivo."
Mônica segue em mandato coletivo na Alesp. "Eu faço mandato coletivo e estou pensando no futuro", diz a parlamentar, que agora faz parte do coletivo SPPretas. "Sempre vou chamar outras pessoas pro meu mandato, para mim só funciona assim", afirma.
Os mandatos coletivos denunciam a ausência de participação popular na política. Algumas pessoas pensam que é possível fracionar o poder de um mandato, mas só uma pessoa é deputada: esse parlamentar precisa da ajuda do seu coletivo e não de disputa interna.
Mônica Seixas, do coletivo SPPretas
Segundo o estudo, as dificuldades desses mandatos devem diminuir com o tempo. "Os mandatos ativistas são jovens. Estão em uma fase de transição, buscando capacitação e apoio para iniciar sua consolidação", diz trecho do estudo.
Transpor um ativismo de movimento social para a institucionalidade não é simples, automático.
Áurea Carolina, ex-deputada ativista