Candidatura coletiva une pastor e filha de candomblé contra o racismo
Depois da eleição dos primeiros mandatos coletivos na Câmara Municipal de São Paulo em 2020, uma chapa coletiva de negros que defendem a diversidade religiosa vai concorrer este ano: com seis integrantes, o Coletivo Luiz Gama, do PSOL, juntou um pastor e uma filha de candomblé para chamar a atenção para o preconceito racial e religioso na cidade, onde denúncias de intolerância não param de crescer.
O que aconteceu
Filha de pais católicos, Juliana Souza, 35, cresceu morando ao lado de um terreiro na Cidade Líder, na zona leste. "Vi muito preconceito contra o terreiro", diz ela. "Cresci nos arredores ouvindo que ali era lugar do capeta, do demônio. Viviam chamando a polícia."
Juliana se converteu ao candomblé há cinco anos, quando ela mesma passou a sentir o "racismo religioso". "Esta semana um motorista de aplicativo se recusou a transportar duas irmãs porque elas estavam vestidas com as nossas roupas brancas", diz.
Já ativista, Juliana encontrou os outros membros do coletivo por meio de amigos em comum no movimento negro. Ao se juntarem, notaram a diversidade religiosa dos membros. "Tem umbandista, candomblecista, evangélico...", diz ela. Eles perceberam também que "o racismo religioso afetava a todos nós". "Esse é um dos tentáculos do racismo. Lutar contra o preconceito religioso é lutar contra o racismo."
As denúncias contra intolerância religiosa crescem no estado. Só nos três primeiros meses do ano passado foram registradas 181 denúncias, quase a mesma quantidade de todo o ano de 2022 (207). "Com a ampliação do debate sobre racismo e intolerância religiosa, muitas pessoas se sentem mais encorajadas a denunciar essas práticas", diz Juliana.
Os terreiros são o que os quilombos foram no passado. Eles eram os indesejados. Quando você não tem nenhum lugar na sua vida, você tem a casa de Axé.
Juliana Souza, pré-candidata
Evangélico desde criança
O evangélico do grupo é o pesquisador Marcos Costa, 49, pastor da Igreja Batista Jardim da Conquista, em São Mateus (zona leste). "Conheci o pastor pela amizade que ele tem com minha Iyalorisa [sacerdotisa] Cida de Oyá", diz Juliana.
Ordenado pastor este ano, Costa é evangélico desde criança. Inspirado pelo pai, que foi pastor da Assembleia de Deus, Costa já pregava na comunidade desde a adolescência. Aos 16 anos, porém, questionou a falta de engajamento político de sua igreja e encontrou resposta entre os batistas, cuja origem remonta à Inglaterra no início do século 17. "Fui considerado missionário por muito tempo até receber o título de pastor, que significa cuidador", diz.
Costa lamenta a perseguição que alguns evangélicos infligem a religiões de matriz africana. "Existe até crime organizado ligado a igrejas neopentecostais que proíbem terreiros em comunidades", diz Costa, ao lembrar que o cristianismo já foi vítima de perseguição.
Até hoje há cristãos perseguidos em países teocráticos, como o Irã. "Quando o evangélico é intolerante, ele nega a história da própria religião. Sem liberdade religiosa não teríamos chegado aqui", diz. Em 2020, 31% dos brasileiros eram evangélicos, contra 50% de católicos e 2% de afro-regiliosos, segundo o Datafolha.
Hoje, afirma o pastor, o evangélico sofre outros tipos de preconceito. Formados por 60% de pretos e pardos, os protestantes brasileiros "por muito tempo viveram em guetos". "Criaram sua linguagem, seu jeito de se vestir, mas não tiveram inserção social", afirma. Ele diz que é difícil encontrar evangélicos de renome em espaços acadêmicos, ou fazendo cinema e artes plásticas. "Hoje a maioria dos artistas estão restritos à musica gospel."
Um dos desafios da comunidade é superar a segregação e chegar a esses espaços. Evangélicos ou candomblecistas, a gente tem a mesma identidade afro-brasileira e precisa se organizar politicamente.
Marcos Costa, pré-candidato
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Os membros do coletivo se uniram também para aumentar a representação negra na política. Em 2022, por exemplo, pretos e pardos conquistaram 26% das cadeiras na Câmara dos Deputados, embora sejam 55,5% da população.
Se não bastasse, a PEC da Anistia quer perdoar os partidos que não financiaram corretamente candidaturas negras e femininas em 2022. Embora as legendas devam distribuir proporcionalmente os recursos do Fundo Partidário e do Fundo de Financiamento de Campanha aos candidatos negros, a PEC livra os partidos que desrespeitaram a regra de multa estimada em R$ 23 bilhões. Aprovado na Câmara, o texto aguarda votação no Senado.
O lançamento de coletivos negros é uma estratégia para superar essa lacuna. "Pensamos em unir o tema racial como o eixo central dos compromissos do coletivo", diz o pastor. "Não queremos uma república pentecostal, católica ou muçulmana, mas que o Estado dê condições para que todas as expressões religiosas tenham espaço."
Foi por isso que o coletivo foi batizado com o nome do advogado abolicionista Luiz Gama (1830-1882). "A gente queria um nome que representasse a constituição da nossa população", diz Juliana. "Luiz Gama foi um negro que libertou muitos escravizados apesar das circunstâncias da época. Como ele, a gente busca por Justiça e ocupação dos espaços de poder."
A candidatura coletiva será encabeçada pelo pastor. Embora o mandato seja coletivo, apenas um integrante do grupo aparece na urna eletrônica. Como o modelo não é previsto em lei, o acordo é informal e cabe a quem for eleito dividir as tarefas com os outros integrantes.
O Luiz Gama será mais um coletivo que o PSOL tenta emplacar. São do partido os dois coletivos que chegaram pela primeira vez à Câmara Municipal na eleição passada: a Bancada Feminista e o Quilombo Periférico, também formado por negros.
A mensagem é simples: Quando você chega na UBS procurando um médico para seu filho e marcam a consulta pra daqui seis meses, você pode ser crente, católico, umbandista ou ateu: o sofrimento é o mesmo. Quando seu filho negro é assassinado pela polícia, não interessa se ele é do Candomblé ou da Deus é Amor.
Marcos Costa, pré-candidato
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