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Nos dias de hoje ainda existe lugar para princesas?

Dylan Martinez/Reuters
Imagem: Dylan Martinez/Reuters

Naomi Wolf

28/12/2011 06h30

A imagem parecia muito familiar – a jovem britânica bem vestida, agachando-se com um sorriso radiante, ao lado de uma garota tímida que, apesar de extasiada, ficou intensamente corada. Mas dessa vez tratava-se de Kate Middleton, a nova princesa britânica, que assumiu o manto deixado pela mãe do príncipe William, Lady Diana Spencer. Assim como ocorreu com a sua sogra – cuja morte foi tão lamentada –, o casamento de Kate Middleton foi carregado de fetiches, tendo sido visto e escrutinado por milhões de pessoas em todo o mundo, e a ascensão dela à condição de princesa foi salpicada pela fantasia da imprensa glamorosa.

Mas não haveria algo de estranhamente retrô no que se refere a essa obsessão por Kate Middleton como a nossa nova figura de princesa? Será que nós sequer precisaríamos da categoria funcional de "princesa" em uma época na qual as notícias são ruins, ninguém acredita em finais felizes de contos de fadas e as mulheres não esperam mais que os sapatinhos de cristal caibam nos seus pés?

Eu argumentaria que, sob determinado aspecto, o fascínio pelas princesas jamais terminará. Mas eu diria também que o ícone de princesa está mudando. Qualquer mãe de uma menina sabe que aos cerca de três ou quatro anos de idade é provável que a pequena se identifique intensamente com as princesas. Ela gosta de tiaras, de cetros cintilantes, de sapatos brilhantes e de vestidos esvoaçantes de pregas.

E ela se identifica com as princesas do universo Disney que ampliaram esse panteão real a cada geração: Cinderela, cujos pés pequeninos a conduziram ao trono; Anastasia, a princesa secreta cuja realeza era desconhecida até mesmo por ela própria; Bela, que foi descoberta por um príncipe aprisionado no corpo de uma Fera e que acabou alçada à nobreza. Hollywood atualiza constantemente essa fábula: o primeiro filme da série popular "The Princess Diaries" ("Os Diários da Princesa") mostra como a ingênua Anne Hathaway, uma aluna de segundo grau mal vestida e de sobrancelhas feias, passa a receber aulas de princesa para liderar a mística nação chamada Genovia.

A segunda onda do feminismo desconstruiu a narrativa da Bela Adormecida e outros mitos de princesas, apresentando tais estórias como uma forma de hipnotismo criado para fazer com que as mulheres sejam seduzidas pelo casamento e a passividade, e estruturados para ensiná-las que as suas vidas reais só têm início com o beijo de um príncipe. Até hoje eu encontro mães feministas horrorizadas ao constatarem como essa narrativa ainda atrai as suas filhas pequenas que foram criadas de uma forma igualitária. Elas me perguntam por que é que as suas filhas têm tal obsessão por serem princesas?

Eu diria a elas que não se preocupassem. As feministas da segunda onda não entenderam bem a questão. Quem analisar atentamente tudo isso perceberá que o arquétipo da princesa não diz respeito a passividade e decoração: ele se refere ao poder e ao reconhecimento do eu verdadeiro. As garotinhas são obcecadas pelas princesas pelo mesmo motivo que os garotinhos são obcecados pelos super-heróis, que eles identificam pelos seus "poderes".

Em que outro papel feminino uma mulher pode proferir uma sentença e fazer com que o mundo se dobre diante dela? Que outra figura feminina é capaz de comandar um exército, ter acesso a um tesouro ou até mesmo, como nas imagens de Kate Middleton ou de Diana Spencer, simplesmente transmitir, com a sua presença, uma sensação de mágica, empolgação e capacidade de tranquilizar?

As princesas são mais benevolentes do que as estrelas pop, e também menos drogadas; elas são mais poderosas do que Hillary Clinton e Condoleezza Rice, e usam túnicas mais bonitas. Elas são menos descartáveis do que as modelos e pelo menos parecem ser menos estressadas do que as mães trabalhadoras, mesmo quando estas se encontram no topo da hierarquia profissional. Que menina não iria se sentir atraída por tal arquétipo, ao se considerar que há pouquíssimos outros papéis com estas características na nossa cultura popular?

Duas princesas recentes seguiram esse roteiro, tendo desempenhando, de forma própria, aquele que foi um trabalho pioneiro. A princesa Diana foi analisada durante décadas, mas são poucos os que dão a ela o crédito devido por ter sido uma autêntica subversiva em relação ao sistema de classes britânico. Como ela era tão convencionalmente bonita e não tão convencionalmente educada, a forma como transmitia a sua mensagem é considerada acidental ou instintiva – mas eu acredito que ela raciocinava de forma cuidadosa e analítica.

Em um momento no qual o Reino Unido apresentava uma estratificação de classe ainda mais rígida do que hoje, Diana defendia famílias que viviam em conjuntos habitacionais e jovens desempregados. Ao rejeitar a exclusividade da "alta cultura" para a monarquia e as elites, ela apoiou concertos de Elton John e do Wham! Em uma época em que pacientes de Aids eram desprezados, ela se fez fotografar abraçando-os. Quando os cidadãos muçulmanos britânicos eram tidos como "falsos britânicos", ela, como mulher solteira, namorou de forma provocadora o mais bonito e rico deles.

Eu acredito que Diana sabia que o Reino Unido e as suas elites teriam que mudar para que o país entrasse em uma relação autêntica com o mundo e a história, e ela atribuiu à sua própria persona, de uma forma Wildeana, as tarefas de conduzir e encarnar essa mudança. Ela travou uma espécie de guerra de consciência e semiótica contra o status quo estático. É bom lembrar que ela entendeu – da mesma forma que as suas predecessoras, igualmente conscientes, Elizabeth I e Vitória – o poder que tinha.

Elizabeth I usava as suas túnicas e joias, a sua tez esbranquiçada e a testa raspada, o seu séquito e aquilo que chamaríamos de o seu poder de estrela, para enviar mensagens políticas importantes relativas ao papel colonial da Inglaterra, ao seu próprio status incontestável e alegorizado de "rainha virgem" e à legitimidade do seu reinado. A Rainha Vitória usou a sua "marca" de maior figura arquetípica materna do país, esposa devota, juíza da respeitabilidade e protetora do bem-estar público, para mandar mensagens relativas à estabilidade social do Reino Unido durante um período de grandes crises referentes a reformas; para legitimar as agitações da era industrial e suavizar os choques provocados por esta; e para diferenciar a sua monarquia, com os seus valores burgueses domésticos, dos libertinos e adúlteros reais que a precederam. Diana deu continuidade à tradição da realeza feminina britânica usando as armadilhas da beleza, das roupas sofisticadas ou de imagens mais populares domesticamente para alcançar furtivamente metas políticas substanciais.

Entra agora em cena Kate Middleton: por que toda a agitação? De certa forma, Middleton assume, conforme todos reconhecem subliminarmente, a missão bastante radical da sua sogra, legitimando tal missão e deslocando-a uma geração para o futuro – em um Reino Unido que se modificou bastante da forma que Diana desejava e planejava. Kate é a princesa de um Reino Unido bem mais inclusivo e multiétnico, e socialmente mais homogêneo.

A própria história de aspirações de classe média da família Middleton – o bisavô dela foi mineiro de carvão – revela um Reino Unido de maior mobilidade social do que aquele que Diana conheceu. A forma como Kate interage com pessoas de todas as classes, no seu papel real, lembra à primeira vista Diana – mas o jeito de Kate é isento daquela condescendência que até mesmo Diana, na sua fase mais igualitária, foi incapaz de descartar. Muito tem se falado a respeito do estilo de moda de Kate Windsor e da sua irmã Pippa Middleton, um misto de estética de classe média e alta. Mas isso é mais do que uma simples análise desse estilo; a discussão reitera que existe uma mistura de classe média e alta em andamento, sob o aspecto cultural, e talvez até mesmo genético, no Palácio de Buckingham.

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Irá Kate fazer coisas mais ousadas e notáveis do que simplesmente inserir um frescor tranquilizante, uma abertura social e um clima de classe média no universo da realeza? Pouco importa. De certa forma haverá maior efetividade se ela simplesmente prosseguir com aquilo que já conseguiu fazer com sucesso até este momento: trazer para dentro dos portões da realeza valores do "cidadão comum" britânico como o trabalho árduo, o autoaperfeiçoamento e a ausência de pretensão, sem chamar muita atenção para a subversão implícita neste ato.

Será que nós deveríamos nos preocupar, como as mães feministas, quando as nossas filhas voluntariosas ficarem obcecadas pelas princesas? De jeito nenhum. A descrição dessa função mudou. Nos dias de hoje as princesas não são mais simples damas aristocráticas que saboreiam refeições refinadas.

De fato, atualmente as princesas agem de forma condenável – conforme ocorre frequentemente com Fergie – e dão a impressão de serem amostras de “eurotrash” (termo pejorativo utilizado para designar europeus ricos e arrogantes) que esperam ser apoiadas devido à suas conexões sociais, em vez de trabalharem como o resto das mulheres. Hoje em dia ser princesa significa trabalhar duro. As princesas atuais estão visivelmente desempenhando várias tarefas, assim como o resto das mulheres trabalhadoras, casadas ou solteiras. Talvez a reação reflexa de desaprovar as princesas seja meio ultrapassada.

Ao mesmo tempo, talvez as atenções mundiais tenham se concentrado tanto na princesa britânica porque as outras princesas não se saíram tão bem recentemente: a princesa Masako, do Japão, uma poliglota formada pelas universidades de Harvard e Oxford, que trabalhou como corretora de comércio internacional, achou o papel de princesa difícil: ela demorou oito anos para gerar um herdeiro – na verdade, uma herdeira –, raramente se engaja em atividades relativas à vida pública e sofre de estresse crônico.

A filha mais velha do rei da Tailândia abriu mão do seu título real para casar-se com um plebeu norte-americano, mas ela agora está divorciada e retornou ao país natal, em uma trajetória que não se coaduna com os contos de fadas. A terceira e atual mulher do irmão dela, que herdará o trono tailandês, é uma princesa grosseira: um vídeo caseiro que circula pela Internet mostra a princesa comemorando o aniversário do poodle do príncipe, com os seios à mostra.

O vídeo não se constitui exatamente em um “momento Cinderela”. A mais conhecida narrativa relativa a uma princesa da Arábia Saudita é uma história de horror: em 1977, por ordem do seu avô, Misha'al bint Fahd al Saud foi executada aos 19 anos de idade por, supostamente, ter cometido adultério. Tendo em vista todos esses contratempos nas vidas de princesas de verdade, não é de se surpreender que uma história que se adeque ao arquétipo vire o centro da atenções.

Isso ocorre porque, mais importante do que o papel “real” de uma princesa é o papel arquetípico, e até mesmo junguiano, desempenhando por ela. Afinal de contas, o que fazem todas aquelas princesas do mundo Disney? Elas estão ocupadas em ser heroínas das suas próprias vidas. Em um confronto assustador, Anastasia mata o maligno Rasputin, e salva a Rússia. Mulan ajuda a derrotar os conquistadores hunos, salvando assim também a sua família e o seu país. Bela liberta o seu escravizado príncipe da maldição de um encantamento. Em “The Princess Diaries” é a força interna e a graça da personagem de Anne Hathaway, e não apenas a sua postura e beleza, que a avó dela desenvolve.

Até mesmo a ligeiramente irritante Cinderela do desenho animado de 1950 não é assim tão ruim, se nós percebermos que os sapatinhos de cristal cabem no seu pé porque ela é bondosa para com as pequenas criaturas – e não cabem nas suas irmãs de criação não tanto porque estas sejam “feias”, mas sim porque elas são desalmadas. É interessante que quando as fábulas são cheias de narrativas reais de poder, assertividade e heroísmo feminino, elas são lidas mesmo assim como se fossem referências à beleza e à passividade. Não se preocupe se a sua filha de cinco anos de idade insistir em usar um vestido cor-de-rosa de princesa. Isso não significa que ela deseja virar uma nulidade, mas sim que a menina quer conquistar o mundo, o que para ela é suficiente.

* Naomi Wolf é escritora, crítica social e ativista política. O próximo livro dela, "Vagina: A Cultural History" ("Vagina: Uma História Cultural"), será lançado em 2012.