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Após lei que permite mudança de nome, transgêneros lutam contra homofobia na Argentina

A Argentina legalizou o casamento gay em 2010; especialista diz que país está na vanguarda em leis de gênero - Natacha Pisarenko/AP
A Argentina legalizou o casamento gay em 2010; especialista diz que país está na vanguarda em leis de gênero Imagem: Natacha Pisarenko/AP

Emily Schmall

The New York Times, em Buenos Aires (Argentina)

27/05/2012 06h00

Sob o brilho das luzes estroboscópicas nas cores do arco íris, um DJ tocava a versão disco de “La Vie em Rose” de Grace Jones numa noite da semana passada, enquanto casais brindavam com garrafas de cerveja para celebrar a aprovação da lei que a comunidade transgênera da Argentina considerada pioneira.

A Argentina aprovou uma das leis mais liberais sobre a mudança de gênero do mundo, permitindo que pessoas alterem seu gênero nos documentos oficiais sem ter de passar primeiro por um diagnóstico psiquiátrico ou por uma cirurgia.

A medida, que recebeu apoio unânime no Senado este mês, também exigirá que funcionários da saúde pública e privada forneçam tratamento hormonal gratuito ou cirurgia de mudança de sexo para aqueles que assim desejarem – inclusive para menores de 18 anos.

A lei da Argentina vai bem além das aprovadas na Inglaterra em 2004 e na Espanha em 2007, que permitem aos indivíduos mudarem seu nome e sexo depois de receber diagnóstico de disforia de gênero persistente, uma condição na qual os indivíduos sentem-se presos no corpo do sexo oposto.

“Houve muitas mudanças nas leis de gênero no mundo todo, mas a Argentina está à frente de todas”, disse Harper Jean Tobin, conselheiro de política do Centro Nacional para a Igualdade Transgênera em Washington. “Todas as outras leis têm exigências demais e obrigam as pessoas a passarem por procedimentos médicos indesejados ou os negam quando são necessários.”

A medida veio dois anos depois que a Argentina se tornou o primeiro país da América Latina a legalizar o casamento homossexual. É a mais recente de um grande número de decisões liberais sobre temas de direitos civis, incluindo uma lei que descriminaliza o aborto nos casos de estupro e dá o direito de morrer para os doentes terminais.

A medida, que foi apresentada pela primeira vez em 2007 por Silvia Augsburger, uma deputada da Câmara argentina, define a identidade de gênero como “a experiência interna e individual de gênero da forma como cada pessoa a sente”. A presidente Cristina Fernandez de Kirchner deve assinar a aprovação da lei este mês.

Os líderes da comunidade transgênera da Argentina consideram a lei de identidade um passo importante na direção da autodeterminação.

“Eu não podia usar os serviços públicos por causa do nome nos documentos, o nome que meus pais me deram, não era eu, e uma pessoa que não tem uma identidade não tem direitos”, disse Marcela Romero, presidente da Atta, um grupo ativista que promove os direitos das pessoas que são transgêneras, transexuais e travestis na Argentina.

Com vergonha de serem chamados por um nome que não está de acordo com a imagem que apresentam, os transgêneros na Argentina costumam abandonar a escola, evitar hospitais e ter dificuldades para encontrar empregos bem remunerados, dizem os ativistas.

Essas pessoas costumam ser alvo de crimes violentos, de acordo com um relatório de janeiro feito pela Inadi, a agência antidiscriminação da Argentina, que também apontou que a maior parte dos entrevistados não havia concluído o ensino fundamental e adotara a prostituição. Como cerca de um terço dos transgêneros do país contraíram Aids, o Ministério da Saúde da Argentina coloca sua expectativa de vida média em 35 anos.

A lei de identidade de gênero oferece outro caminho para os quase 22 mil transgêneros da Argentina, diz Silvana Sosa, 35. “Podemos ser mais do que esteticistas ou prostitutas”, disse ela. “Não temos que passar nossas vidas nas esquinas, de salto alto, e batom vermelho, na chuva e no frio. Basta disso.”

Nascido homem, Sosa começou a tomar hormônios femininos, com a permissão de seus pais, aos 13 anos, e mais tarde injetou silicone barato no peito e nas coxas, e quase teve uma infecção na perna por causa disso. Ela disse que começou uma carreira de 20 anos como profissional do sexo para sustentar seus pais e irmãos.

Depois que seu pai perdeu o emprego numa fábrica, a família se mudou para um acampamento de sem-teto sob uma ponte, sobrevivendo de restos de comida coletados num lixão municipal.

Sosa começou a trabalhar há dois anos como conselheira sexual na ala de emergência de um hospital em Buenos Aires especializado em doenças infecciosas. Ela está entre as milhares de pessoas que devem se beneficiar com a cobertura médica prevista na lei para realizar cirurgia de mudança de gênero.

“Quando chegar a hora, eu chorarei de felicidade”, disse Sosa, cujo nome era Miguel Angel Sosa. “Eu sou Silvana Daniela Sosa. Não sou mais a pessoa que eu era.”

De acordo com a lei atual, os argentinos que sentem que seus nomes nas carteiras de identidade não refletem seu gênero verdadeiro devem receber um diagnóstico médico de disforia de gênero e apresentar uma ação na Justiça – um protocolo padrão em muitos países, inclusive nos Estados Unidos.

“É incomum e bastante progressiva”, disse Katrina Karkazis, especialista em bioética na Universidade de Stanford, sobre a nova lei argentina.

“A lei está dizendo: 'nós não só os daremos o direito à identidade, mas para aqueles que querem intervenção médica, exigiremos que os serviços de saúde públicos e privados cubram o custo dos procedimentos dessa atualização.”

Entretanto, alguns ativistas transgêneros dizem que a lei não resolveria todos os seus problemas.

Num canto escuro da Casa Brandon, o clube gay fundado há 12 anos e que leva o nome de Brandon Teena, o adolescente transgênero de Nebraska estuprado e assassinado em 1993, Mia Benitez, uma segurança de 29 anos, disse que a lei não é um remédio contra a homofobia.

“As percepções das pessoas não mudam da noite para o dia”, disse ela.

“É um tanto enganadora”, disse Melisa Ingelozzi, 25, estudante de filosofia da Universidade de Buenos Aires, que descreveu seu senso de identidade de gênero como algo fluido.

“Ela apenas permite que eu mude de homem para mulher, mas e se eu não me identifico com nenhum dos dois? Ela torna a identidade trans invisível.”

A repressão sexual ainda é ampla na Argentina, onde 80% da população é católica romana e os homossexuais eram vistos como subversivos durante a ditadura, disse Graciela Balestra, psicóloga e cofundadora do Open Door, um centro de terapia para gays, lésbicas e transgêneros.

“Ainda há muita discriminação”, disse ela. “Pouquíssimas pessoas são totalmente assumidas, em parte por causa da homofobia interna.”

Uma semana depois do voto no congresso, a Igreja Católica condenou a lei numa declaração assinada por quatro dos monsenhores do país.

“A diversidade sexual não depende apenas de uma decisão ou construção cultural, mas tem suas raízes num fato da natureza humana que apresenta sua própria linguagem e significado”, diz a declaração de 16 de maio.