Em guerra contra fake news, Coreia do Sul cria leis que podem abrir espaço para censura
Enquanto os governos em todo o mundo refletem sobre como lidar com a explosão de "notícias falsas", a Coreia do Sul promete usar suas leis criminais para conter o que as autoridades declararam ser uma ameaça à democracia.
Os planos atraíram protestos dos defensores da liberdade civil, que consideram a iniciativa como um ataque à liberdade de expressão. Eles questionam se o presidente liberal Moon Jae-in, que foi eleito no ano passado após uma revolta popular que ajudou a derrubar um governo corrupto, está se encaminhando para um caminho tomado por seus antecessores conservadores que usaram seus poderes e a acusação criminal de difamação para reprimir seus críticos.
Alguns especialistas dizem que o governo de Moon está se tornando cada vez mais sensível à opinião pública enquanto luta com políticas econômicas e sociais e tenta desesperadamente manter o otimismo vivo por causa de sua frágil diplomacia com a Coréia do Norte.
O ministro sul-coreano da Unificação, Cho Myoung-gyon, reuniu-se com grupos de desertores da Coreia do Norte na quarta-feira (24) para tentar acalmar as críticas sobre sua decisão de impedir que um repórter norte-coreano cobrisse as negociações inter-coreanas da semana passada para não irritar as autoridades de Pyongyang.
O porta-voz presidencial, Kim Eui-kyeom, criticou jornais conservadores em recentes reuniões por supostamente exagerar as divergências entre Washington e Seul sobre as políticas da Coreia do Norte.
A controvérsia surgiu depois que o ministro da Justiça, Park Sang-ki, ordenou na semana passada que promotores perseguissem de maneira agressiva as pessoas que divulgassem "informações falsas e manipuladas". Ele disse que os promotores devem ser proativos na detecção de histórias falsas e desinformações e, quando necessário, levar adiante investigações criminais, mesmo quando ninguém apresenta uma queixa.
Eles podem aplicar várias leis, como a de difamação, que leva uma pena de até sete anos de prisão. O Ministério da Justiça também planeja revisar as leis para facilitar a remoção de conteúdo on-line suspeito.
A Agência Nacional de Polícia disse que está analisando 16 histórias falsas que apareceram online. Elas incluem alegações de que Moon está mostrando sinais de demência; que o primeiro-ministro, Lee Nak-yon, prestou homenagem ao fundador da Coreia do Norte, Kim Il Sung, durante uma recente visita ao Vietnã; e que Coreia do Norte exigiu pagamento em dinheiro de 200 trilhões de wons (US$ 176 bilhões) de Seul como custos de engajamento.
Um alvo freqüente é o YouTube, que está transbordando de canais de vídeo administrados por conservadores de direita que muitas vezes fazem afirmações bizarras contra um presidente que eles caracterizam como um simpatizante da Coreia do Norte.
Park Kwang-on, um parlamentar do Partido Democrático de Moon, atacou o Google na terça-feira depois que a empresa recusou a exigência do partido de remover cerca de cem vídeos, incluindo aqueles que espalham rumores sobre Moon, do YouTube. Conservadores dizem que o partido que está atualmente no poder está pressionando uma empresa privada para fins políticos.
Velhos hábitos
Sob o governo da antecessora de Moon, Park Geun-hye, os promotores indiciaram uma jornalista japonesa acusada de difamar a então presidente citando rumores grosseiros sobre seu paradeiro no dia do afundamento de uma balsa que matou mais de 300 pessoas em 2014.
Assessores de Park, também em 2014, apresentaram uma queixa de difamação contra seis repórteres do Segye Ilbo depois que o jornal divulgou uma reportagem sobre um documento presidencial que vazou para alegar que Park permitia que um confidente privado influenciasse os assuntos do Estado.
Antes de Park, o presidente Lee Myung-bak foi acusado de transformar grandes redes de TV em seus porta-vozes, preenchendo seus cargos de liderança corporativa com apoiadores próximos. Eles se intrometeram em reportagens e fecharam programas de notícias investigativas que criticavam as políticas de Lee, provocando greves e demissões em massa, conforme os jornalistas protestavam. Lee também tomou medidas para fortalecer o monitoramento on-line e limitar o anonimato das pessoas postando comentários. Promotores prenderam um blogueiro contrário ao governo em 2009 sob a acusação de espalhar rumores online que perturbaram a economia do país. O blogueiro foi mais tarde absolvido no tribunal.
Park e Lee estão agora cumprindo longas penas de prisão por causa de escândalos de corrupção.
O governo de Moon não tentou influenciar a mídia tradicional da maneira como Park e Lee fizeram. Mas os críticos dizem que as tentativas de impor mais regras aos usuários da internet podem criar um efeito inibidor entre as pessoas e os repórteres que criticam e investigam o governo.
"Nós claramente testemunhamos as manobras dos governos de Lee Myung-bak e Park Geun-hye para destruir a mídia", disse a União Nacional dos Trabalhadores da Mídia em um comunicado na semana passada. “Não é apropriado que o governo intervenha e defina o que é uma notícia falsa. Isso quase certamente criará suspeitas de que as decisões serão baseadas no gosto do governo.”
Liberdade de expressão e de imprensa são questões delicadas na Coreia do Sul, que desde a década de 1960 até os anos 80 foi governada por ditaduras militares que censuravam fortemente as reportagens e perseguiam e até executavam jornalistas e dissidentes.
Os debates recorrentes sobre as fronteiras da regulamentação governamental e da liberdade de expressão também refletem o quanto a Coreia do Sul está dividida ao longo de linhas ideológicas. Os argumentos têm girado principalmente em torno de questões políticas partidárias, enquanto o país ainda não deu nenhum passo significativo para conter o discurso de ódio e discriminação contra mulheres e minorias que estão transbordando on-line.
"Os defensores de cada lado se vêem sinceramente como defensores do bem contra o mal e estão dispostos a fazer praticamente tudo para garantir que as forças da 'luz e virtude', ou seja, seu lado, triunfem", disse Andrei Lankov, professor da Universidade Kookmin, em Seul.
Assunto escorregadio
Autoridades do governo dizem que as histórias falsas e os boatos negativos se tornaram um problema mais sério do que antes porque a influência deles é amplificada por smartphones e aplicativos de bate-papo.
O Ministério da Justiça afirmou que a repressão visa apenas histórias que causam "desconfiança social" e ferem o "discurso democrático" por "intencionalmente manipular fatos objetivos", e que a ação não visa atingir a "expressão de opiniões diferentes, reportagens falsas causadas por erros e suspeitas com base em lógica."
Especialistas legais dizem que não pode haver uma maneira totalmente objetiva para um governo distinguir o que é maliciosamente falso e o que é simplesmente impreciso.
Nem sempre é fácil analisar o que é verdadeiro e falso.
Durante anos, Park se irritou com rumores bizarros de que ela estava permitindo que parentes de um líder de uma seita já morto manipulassem seu governo a partir dos bastidores, descrevendo as acusacões como mentiras descaradas. Jornalistas acabaram provando que as suspeitas eram verdadeiras, provocando protestos em massa que levaram a saída de Park e a novas eleições.
Lee Kang-hyeok, da Associação de Advogados Democratas de Seul, disse que os planos para fortalecer o poder do governo de excluir o conteúdo online e colocar os internautas em sintonia com os repórteres tradicionais em termos de responsabilidade são particularmente preocupantes.
Lee afirmou que a liberdade de expressão do país já é controlada pela lei de difamação, com acusações sendo realizadas contra repórteres e críticos do governo. Também é relativamente fácil remover artigos online, devido a uma lei que exige que os sites suspendam a publicação de conteúdo considerado falso ou calunioso por um mês antes que juízes decidam sobre as reclamações.
Sensibilidade na Coreia do Norte
Lankov disse que o governo de Moon pode acabar em uma luta amarga com os críticos e a mídia conservadora se o apoio público de sua diplomacia com a Coreia do Norte diminuir.
Moon acumulou apoio robusto por sua política com a Coreia do Norte, o que resultou em três encontros neste ano com o líder norte-coreano, Kim Jong Un. Moon também ajudou a marcar uma reunião entre Kim e o presidente americano, Donald Trump.
Mas Pyongyang vem jogando duro desde então, insistindo que as sanções devem ser suspensas antes de qualquer progresso nas negociações nucleares, alimentando dúvidas sobre se Kim irá abandonar totalmente seu arsenal. O entusiasmo da Coreia do Sul pelo engajamento também criou desconforto com os Estados Unidos, que pediram que os aliados mantivessem pressão até que o Norte se desnuclearizasse.
“O governo de Moon tem boas razões para acreditar que, se não criar e manter uma impressão de progresso em relação à desnuclearização, os falcões americanos podem usar a força, e isso levará a um desastre”, disse Lankov, que também afirmou que a política de Moon é "racional e responsável", apesar de possivelmente ser "desonesto" sobre a intenção norte-coreana.
"Eles estão aborrecidos com as pessoas que contam a verdade triste, já que a excessiva honestidade pode provocar um desastre", disse ele.
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