'Round 6' foi baseada em história real de 'Auschwitz da Coreia do Sul'?
Colaboração para o UOL
09/01/2025 05h30
O lançamento da segunda temporada de "Round 6" na Netflix trouxe à tona no TikTok a teoria de que a luta pela sobrevivência vista na série foi inspirada em eventos atrozes da História recente, em especial a de um centro de detenção que ficou conhecido como "Auschwitz da Coreia do Sul".
'Repressão aos pedintes'
Cenários e horrores da série teriam sido espelhados em Hyungje Bokjiwon (ou Lar dos Irmãos), segundo influenciadores. O local era oficialmente tratado como um centro de bem-estar social pelo governo sul-coreano entre 1970 e 1988, mas operava na prática como um centro de detenção e campo de concentração.
Hyungje Bokjiwon era um dos centros utilizados pelas autoridades sul-coreanas para abrigar supostas pessoas em situação de rua. A partir do Ato de Serviços de Bem-Estar Social de 1970, o governo passou a promover um "projeto de purificação social", com o objetivo de se livrar dos cidadãos sem rumo nas ruas, vistos como um empecilho à formação de uma nova identidade nacional em meio ao reaquecimento da economia do país pós-Guerra da Coreia.
A partir de 1981, a prática se intensificou graças à ordem do presidente Chun Doo-Hwan, um ex-general que tomou o poder através de um golpe no ano anterior. Ele escreveu uma carta ao premiê Nam Duck-Woo dando ordem para a "repressão aos pedintes", segundo a BBC, em preparação para receber os turistas para os Jogos Asiáticos de 1986 e as Olimpíadas de Seul de 1988.
Policiais recebiam pontos pela quantidade de pessoas que retiravam das ruas e mandavam para os centros. Por isso, nem sempre os levados eram apenas pessoas em situação de rua, mas também crianças e idosos, especialmente sem documentos. Houve casos também de sequestros, especialmente crianças e adolescentes, já relatados pela mídia internacional.
Nos 36 locais como Hyungje Bokjiwon, prisioneiros eram torturados, empregados em trabalhos forçados e estuprados. Sul-coreanos que questionavam o motivo por estarem ali, por exemplo, eram espancados até a morte. Internos eram divididos em batalhões comandados por outros prisioneiros de maior senioridade, que por medo de retaliação de oficiais eram responsáveis diretos pelas barbáries, revelaram reportagens do The Korean Times, BBC, Al Jazeera, Associated Press, entre outros veículos.
Oficialmente, o governo e a imprensa local divulgavam que os levados ao Lar dos Irmãos passavam apenas um ano ali. Eles seriam alimentados, vestidos e reabilitados à vida em sociedade através de treinamentos profissionalizantes. Mas seus internos nunca voltavam para casa e famílias passaram a buscar desaparecidos por todo o país.
Uniformes azuis numerados
Um orfanato nos anos 1960, Hyungje Bokjiwon tinha cerca de 20 fábricas em seu interior e abrigava milhares de pessoas durante sua operação como "centro de bem-estar social". Estima-se que apenas 10% de seus internos, contudo, fossem de fato pessoas em situação de rua antes de terem sido levados para lá, já que os centros eram economicamente interessantes para seus administradores, contratados pelo governo.
Detentos do Lar dos Irmãos viviam em uniformes azuis numerados, acomodados em dormitórios em que dividiam as camas em grupos e comiam alimentos podres, segundo relatos de libertados à BBC coreana. A maioria sobrevivia subnutrida e constantemente drogada pelos oficiais do centro, revelaram documentos da Comissão da Verdade e Reconciliação da Coreia do Sul de 2020.
Medicações antipsicóticas e sedativas eram usadas para coibir quimicamente o comportamento dos internos. Entre elas haloperidol, carbamazepina e flurazepam — cerca de 250 mil compridos foram comprados apenas em 1986. A Prefeitura de Busan chegou a negar as acusações em 1987, mais de 30 anos antes da confirmação pelos autos.
Horrores acabaram no final dos anos 1980, após a fuga de 30 prisioneiros. Eles revelaram os horrores do "Auschwitz sul-coreano" e o projeto foi encerrado. O diretor, que teria mantido um quarto de tortura dentro do Lar dos Irmãos, foi preso em 1987, mas recebeu uma pena curta sob pressão do governo militar. Ele morreu de causas naturais em 2016. O relatório de 1987 da oposição estima que cerca de 500 pessoas morreram em Hyungje Bokjiwon.
E o que 'Round 6' tem a ver com isso?
Apesar das teorias nas redes, oficialmente não existe relação entre o universo da série e os horrores de Hyungje Bokjiwon. Na época do lançamento da trama, em 2021, o seu criador Hwang Dong-Hyuk revelou à revista americana Variety que se inspirou em grande parte na série de mangás distópicos japoneses Battle Royale (2000-2005), que traz também uma "gameficação" da batalha pela sobrevivência semelhante à de "Jogos Vorazes" (2008).
"Round 6" foi idealizada ao longo de dez anos, ainda no fim dos anos 2000, e incorporou elementos também de animes japoneses, além de outras histórias que o sul-coreano gostava de ler. Em Battle Royale, estudantes são obrigados a competir em jogos violentos por um regime totalitário. Em Liar Game (2005-2015), outra inspiração do autor, uma garota é envolvida em um torneio em que participantes precisam roubar dinheiro uns dos outros de qualquer forma.
Já o conceito do "jogo da lula" é uma popular brincadeira de criança na Coreia, que serve apenas como plano de fundo para o desenvolvimento de seus personagens. Ao jornal The Korean Times, ele explicou em 2021 que estes jogos infantis coreanos "são simples e antigos", mas que viu "potencial de torná-los atraentes no mundo todo".
Em dezembro de 2024, Hwang Dong-Hyuk admitiu uma inspiração na vida real para a série. No entanto, não eram os eventos do Lar dos Irmãos, mas sim uma demissão em massa ocorrida em 2009 em Pyongtaek pela Ssangyong Motor Company. À AFP, ele afirmou que a trama do personagem principal, Gi-Hun, um trabalhador demitido, foram inspiradas nas greves e nas consequências da ganância e do capitalismo ocorridas durante este período.