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Quem cuidará dos filhos de imigrantes que forem deportados dos EUA?

Jane Ojendiz, filha da imigrante mexicana Nieves Ojendiz, olha para sua mãe durante protesto por reforma na lei de imigração, em Nova York - Drew Angerer/Getty Images
Jane Ojendiz, filha da imigrante mexicana Nieves Ojendiz, olha para sua mãe durante protesto por reforma na lei de imigração, em Nova York Imagem: Drew Angerer/Getty Images

Henry Grabar

11/03/2017 04h00

No domingo, 26 de fevereiro, o sermão da missa em espanhol em Waterloo, em Iowa, foi sobre o medo. Assim como muitas igrejas católicas, a Rainha da Paz, uma construção de tijolos em estilo gótico, serve de centro comunitário para imigrantes hispânicos nesta cidade de 68 mil habitantes na margem do rio Cedar. Waterloo reivindica ser a cidade com maior diversidade do Estado. Os imigrantes, que incluem latinos e refugiados da Bósnia, de Mianmar e da Libéria, ajudaram a estabilizar sua população e o mercado habitacional e a reanimar o comércio local. Mas os homens e as mulheres sem documentos do leste de Iowa que trabalham em fábricas de carne processada, restaurantes e hotéis vivem com calafrios desde a posse do presidente Donald Trump e a adoção de suas novas e agressivas prioridades para a Polícia de Imigração e Alfândega (ICE na sigla em inglês).

O diácono da Rainha da Paz, reverendo Rigoberto Real, disse a uma congregação ligeiramente menor que a normal para que não deixem o medo dominar sua vida, para que entreguem as coisas nas mãos de Deus. Mas não tudo: no domingo seguinte haveria uma oficina com advogados no porão da igreja para ajudar os paroquianos a se prepararem para o caso de um de seus piores medos se materializar: a detenção e deportação pela ICE.

No domingo seguinte, a igreja estava tão cheia que teve de abrir os balcões. Dezenas de pessoas se encontraram com os advogados no porão depois da missa para o que se tornou, para os imigrantes não autorizados nos EUA, um ritual essencial na era Trump: conseguir documentos legais e fazer planos de emergência para o que acontecerá com seus filhos caso os pais sejam detidos ou deportados.

Os planos incluem tudo, desde quem apanhará as crianças na escola a quem comprará as passagens de avião se os filhos nascidos nos EUA seguirem seus pais ao México ou à América Central, ou quem os criará se continuarem separados dos pais, em escolas americanas. Miryam Antúnez de Mayolo, uma advogada de imigração que trabalha em Iowa há 18 anos e ajudou a organizar o evento na igreja, disse que nunca viu um clima tão tenso --nem mesmo depois da batida em Postville, na era Bush, que se tornou um símbolo da repressão organizada à imigração.

"Nunca vi esse nível de desespero", disse ela. "Neste admirável mundo novo, não sei mais o que é normal."

A deportação de Guadalupe García de Rayos, mãe de duas crianças em Phoenix que foi condenada por usar um número falso da Seguridade Social nove anos atrás, teve ampla cobertura e inaugurou uma era de policiamento da imigração. Estrangeiros com ou sem ordens de deportação haviam se sentido mais à vontade depois da revisão de prioridades do segundo mandato de Obama, quando o governo decretou que as autoridades deviam concentrar seus esforços nos estrangeiros criminosos violentos, deixando de lado os demais. Agora esses residentes sem registro nos EUA são novamente alvos.

Há uma sensação de que "agora todo mundo pode ser caçado", disse Gunda Brost, uma advogada de imigração em Cedar Falls, em Iowa, que ajudou pais a preparar cuidadores para seus filhos na Rainha da Paz.

Se você acompanhou o noticiário, poderá reconhecer nomes como Juan Carlos Hernandez Pacheco, o gerente de restaurante e cidadão modelo em West Frankfort, Illinois, que foi detido em 9 de fevereiro; Romulo Avelica-Gonzalez, o pai que foi preso com sua filha no carro diante de uma escola em Los Angeles; e Jose Escobar, um pai de 31 anos sem histórico criminal que foi deportado no início deste mês de Houston para El Salvador, país de onde saiu aos 15 anos.

O que eles três e Guadalupe de Rayos têm em comum é que seus filhos são cidadãos americanos. Eles estão entre os cerca de 3,7 milhões de imigrantes sem documentos nos EUA que têm filhos nascidos no país. E a prisão deles serviu como lembrete a todos os imigrantes ilegais de que devem fazer planos para a possibilidade de uma separação temporária e de longo prazo de seus filhos.

Isso não é novidade. Estima-se que 4,5 milhões de crianças cidadãs americanas têm pelo menos um dos pais sem documentos. Um relatório de 2015 do Instituto de Políticas de Migração e do Instituto Urbano projetou que, entre 2009 e 2013, 500 mil pais e mães de crianças americanas foram deportados --cerca de 100 mil por ano. A maioria deles eram pais; a maioria das crianças ficou nos EUA. Mas a ameaça não diminuiu nos últimos anos do governo Obama. Na segunda metade de 2015, por exemplo, a ICE removeu 15 mil imigrantes sem documentos que afirmaram ter pelo menos um filho americano --contra 72 mil no ano de 2013.

E parecia que a ajuda estava a caminho. O governo Obama tentou proteger essas pessoas por meio do programa Ação Prorrogada para Pais de Americanos e Residentes Permanentes Legais (Dapa na sigla em inglês), que poderia ter concedido adiamentos para 3,3 milhões de pais sem documentos com filhos americanos, e outros 340 mil com filhos adultos. Essa ordem foi efetivamente derrubada quando a Suprema Corte desfalcada de um membro se dividiu por 4 a 4 votos no caso EUA versus Texas em junho passado.

A eleição aumentou a ansiedade nas comunidades hispânicas. Carmen Zuvieta, uma líder da ICE Out em Austin, no Texas, que fez campanha por santuários hoje ameaçados na capital texana, disse à revista "Rolling Stone" em dezembro que os imigrantes sem documentos deviam se preparar para Trump como fariam para um desastre natural --inclusive fazendo procurações e arranjos de custódia para seus filhos. Seu próprio marido foi deportado há quatro anos. Na época, ela fez planos para que seu filho mais moço, hoje com 6 anos, fosse cuidado pelo mais velho, hoje com 26. Em muitos casos, segundo ela, os filhos nunca visitaram a terra natal de seus pais. Embora seja impossível generalizar sobre milhões de famílias nessa situação, permanece uma tensão central, disse ela à "Slate": "Para as crianças, é difícil separar-se dos pais. Mas o futuro é melhor aqui".

Zuvieta hoje tem a residência legal. Mas o que ela temia se tornou realidade. Com Trump no poder, uma de suas irmãs parou de trabalhar totalmente e tem medo de sair para fazer compras. O único lugar onde os imigrantes sem documentos parecem se encontrar hoje em dia são as reuniões para preparar planos de emergência para sua prisão, como as duas organizadas recentemente pela ICE Out em Austin, que atraíram um grande público. Os papéis de pais e filhos se invertem: são os adolescentes nascidos nos EUA que vão ao supermercado e dirigem o carro, enquanto os adultos desesperados fazem planos de contingência. Mas para as crianças é pior, disse Zuvieta: "O medo que elas sentem é incrível. Elas temem ser abandonadas, que seus pais não voltem".

As últimas semanas foram diferentes do que todos os advogados de imigração e ativistas podem se lembrar. As ações da ICE reforçadas por Trump --como a prisão de Daniela Vargas, depois que a jovem de 22 anos, membro da geração Dreamer e beneficiária por duas vezes do Daca (adiamento de deportação para crianças que entraram nos EUA ilegalmente), falou em uma entrevista à imprensa em Jackson, no Mississippi, sobre a detenção de seu pai e seu irmão --deixaram os imigrantes sem documentos temerosos de falar à imprensa e até de aparecer em público. Eles não vão mais à igreja, ao supermercado, à biblioteca pública.

"O tema atual é principalmente o medo", disse Alyson Showell, que dirige o Centro da Família Hispânica em Camden, Nova Jersey. "Vimos a participação realmente diminuir em alguns de nossos programas diurnos. As pessoas têm medo de aparecer."

Os imigrantes sem autorização estão correndo para preparar acordos de tutela e fazer procurações a amigos e parentes, de Indianápolis a Los Angeles. Depois da prisão de Avelica-Gonzalez, por exemplo, a direção da escola de sua filha fez uma reunião especial para discutir o incidente, como relatou o jornal "The Los Angeles Times", e o diretor da escola pediu que os professores falassem com os alunos cujos pais não têm documentos legais para criar um plano familiar caso eles sejam deportados. A Coalizão para Direitos Humanos de Imigrantes de Los Angeles distribuiu amostras de formulários de tutela.

Vários especialistas em imigração com quem falei disseram que é improvável que a ICE deporte os dois pais de uma criança americana. "A ICE pode considerar se o indivíduo é um pai ou guardião legal de um cidadão americano ou um residente permanente legal, ou o cuidador básico de qualquer menor", disse um porta-voz da ICE em um comunicado. Esses advogados sugeriram que um clima de paranoia, alimentado por falsos relatos de postos de checagem da ICE, dominou as comunidades de imigrantes.

A remoção de ambos os pais é historicamente rara. "A ICE tem certo discernimento, e eles perguntam se [um detido] é o cuidador principal", disse Heather Koball, uma das autoras do relatório do Instituto de Políticas de Migração. "Era bastante incomum encontrar casos em que o pai e a mãe foram deportados."

Mas mães solteiras sem documentos cujos parceiros foram deportados devem tomar precauções. Milhares de crianças acabaram em abrigos provisórios porque ambos os pais foram detidos ou deportados. Ninguém sabe se a ICE de Trump irá respeitar o precedente. Mesmo que um pai ou mãe seja detido, mas libertado por ser um cuidador único, o período interino pode ser muito prejudicial.

"Mesmo que eles não sejam deportados imediatamente, precisam indicar alguém para pegar seus filhos na escola", explicou Mayolo. "Se eles tiverem um problema de saúde, precisam que alguém procure os registros médicos. Se for um problema duradouro, precisam autorizar a pessoa que vai tomar conta da criança a, por exemplo, tirar um passaporte para ela, ou poder colocá-la em um avião para voltar para casa."

Pedir esse favor é uma imposição importante. Pode significar que um parente em outro Estado esteja pronto de imediato. Para Karina Z., uma funcionária de hotel em Clinton, Iowa, e uma das clientes de Mayolo, significou encontrar coragem para pedir a uma amiga com cidadania americana se ela se responsabilizaria pelos três filhos de Karina, cidadãos americanos de 4, 5 e 10 anos.

Em toda parte, imigrantes sem documentos estão tentando encontrar amigos e parentes para assumir a responsabilidade por seus filhos caso ocorra o pior. "Há uma enorme preocupação", disse Debra Gilmore, diretora e cofundadora dos Serviços de Advocacia para Imigrantes em Queens, Nova York. Sua organização foi inundada de pedidos para cuidar de pais imigrantes em congregações ou associações de pais e mestres, e pela primeira vez está distribuindo um pacote de emergência que inclui um formulário de procuração para delegar direitos.

Com a nova vigilância, os advogados também aconselham os pais a conversar com os filhos sobre a possibilidade de sua prisão e deportação, disse Martha Real, mulher do diácono e braço-direito na Rainha da Paz. Essas conversas indicam, além dos documentos, uma mudança mais profunda na visão geral dos cerca de 11 milhões de imigrantes sem documentos no país, da estabilidade cautelosa para uma sensação de ansiedade que se estende a todas as responsabilidades em suas vidas.

Em Atlanta, na Geórgia, a advogada de imigração Carolina Antonini enfrentou um surto de interesse por acordos de procuração nas últimas semanas. Ela não cuida desses documentos e passa os clientes a outros advogados, mas disse que a sequência de pedidos é surpreendente, ver antigos moradores de Atlanta confiarem todos os aspectos de sua vida a outras pessoas.

"Tudo, de meus filhos, meus netos, meus pais idosos, casas, veículos, dívidas, contas bancárias, animais, galinhas, cabras, o que você imaginar", disse Antonini, que trabalha em direito de imigração há 25 anos. "Nunca vi nada parecido."