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Retrospectiva 2012: Do apartheid à censura, a música não pode se deixar calar

Simpatizantes da banda feminina Pussy Riot protestam em Moscou, na Rússia, em agosto - Adam Berry/AP
Simpatizantes da banda feminina Pussy Riot protestam em Moscou, na Rússia, em agosto Imagem: Adam Berry/AP

Angélique Kidjo*

Do New York Times

11/12/2012 06h00

A música aumenta a força do protesto, mas esse poder está ameaçado.

Em 1974, eu era uma garotinha e assistia ao noticiário nigeriano, na nossa TV meio capenga, sentada no pátio da minha casa, que ficava na cidade de Cotonou, em Benin. De repente, vi Winnie Mandela no meio de uma multidão, falando sobre seu marido, preso na África do Sul. Foi a primeira vez que ouvi falar do apartheid.



RAIO-X: ANGÉLIQUE KIDJO

Idade52
NacionalidadeBeninense
CarreiraUma das mais importantes artistas africanas, a cantora criou uma fundação em 2006 para ajudar na educação de mulheres em Benin, Camarões, Serra Leoa, Etiópia e Mali
No BrasilA diva se apresentou no Carnaval do Recife deste ano ao lado do percussionista Naná Vasconcelos

Meu mundo desabou.

Eu tinha sido criada por nove irmãos e irmãs numa família modesta, mas muito amorosa, protegida pela dura realidade do meu continente. Meus pais tinham me ensinado que todos nascemos iguais e que não devemos julgar as pessoas pela cor da pele. Era comum recebermos (bem) gente de todos os cantos do mundo.

Naquele dia, mesmo pela tela da TV, pude ver a revolta e o desespero nos olhos dos sul-africanos. Tinha acabado de descobrir a injustiça do apartheid. E senti uma fúria súbita.

Eu cantava nos palcos desde os seis anos de idade; a música sempre foi a minha razão de viver. Vendo aquilo, minha primeira reação foi compor: em vez de gritar para mostrar a minha raiva, eu iria cantá-la.

A canção que fiz saiu dura, hostil, cheia de ódio. Quando meu pai a ouviu, disse: “Você não pode cantar isso; a música não é canal para incentivar o ódio e a violência. Entendo a sua frustração e a sua dor, mas você não pode usar suas canções para botar lenha na fogueira. A música deve ser usada para unir as pessoas e na luta pela paz porque tem a ver com arte e beleza e não com política”.

Muitos anos depois, ainda acredito que a música ajudou a libertar Mandela - principalmente quando me vêm à mente “Asimbonanga”, de Johnny Clegg, e “Biko”, de Peter Gabriel, mas foram muitos artistas que fizeram músicas para ele, tanto denunciando o apartheid como fazendo uma pressão internacional sobre a África do Sul.

Elas foram mais fortes que os discursos. Quem se lembra das palavras de algum político? Por outro lado, todo mundo conhece o verso de Bob Marley que diz: “Libertem-se da escravidão mental”. Os poucos discursos que fizeram história - de Haile Selassie, Martin Luther King ou John Kennedy - têm cara e jeito de música!

Esse é o poder que ela tem. A combinação de melodia e versos contém uma mensagem muito mais forte do que conceitos falados.

Por quê? Talvez porque, como alguns cientistas sugerem, o canto tenha surgido antes da fala no desenvolvimento humano; ou, quem sabe, seja porque, quando alguém canta, sua mensagem nos atinge direto no coração.

Com os anos 1960, surgiram músicas de protesto que mudaram o mundo. Duas décadas depois, o rap começou a falar das realidades sociais que ninguém queria ouvir. Na nossa era digital, o público-alvo para canções de cunho social e protesto cresceu - e, se você quiser expressar suas ideias, não precisa mais de uma gravadora, basta postá-las na Internet.


De certa forma, a indústria fonográfica não controla mais o conteúdo político da música. Em 2003, eu me uni, com muito orgulho, a um grupo de artistas para colocar um anúncio de página inteira no "New York Times", criticando a perspectiva do início de uma guerra no Iraque. O mundo estava tão dividido que, na época, duvidava que a minha gravadora me deixasse voltar a gravar.

O grupo russo Pussy Riot também não precisou de gravadora para levar sua mensagem política ao mundo.

Isso explica por que o maior desafio que a música de protesto enfrenta hoje é a censura. Todos vimos o preço que as três integrantes da banda estão tendo que pagar: foram condenadas a passar dois anos numa colônia penal, embora uma delas já tenha sido solta.


Um site islâmico ofereceu uma recompensa de US$ 100 mil pela morte do rapper iraniano Shahin Najafi, devido a suas opiniões políticas e religiosas.

A autocensura também faz parte do problema: o artista pode pensar duas vezes antes de cantar pedindo a liberdade do Tibete quando sabe que pode ser impedido de faturar e fazer turnê por um país imenso como a China.

Como o conteúdo das canções não pode mais ser controlado, é o potencial de violência que, aos poucos, ameaça a própria existência da música: a paquistanesa Ghazala Javed, que se casou numa família muçulmana superconservadora, foi morta neste ano muito provavelmente porque estava cantando.

A música em si é expressão de liberdade e, em algumas partes do mundo, a alegria e a abertura que evoca são insuportáveis. É doloroso imaginar que no norte de Mali, terra de Ali Farka Toure, região que muitos acreditam ser o berço do blues, ela esteja sendo totalmente sufocada por militantes que obedecem a leis islâmicas ultrarrígidas.

Durante a minha infância na África Ocidental, a música fazia parte do dia a dia. Músicos tradicionais recontavam a nossa história e faziam comentários políticos e morais. Quando eles tocavam, todos nós dançávamos, cantávamos e até respirávamos no mesmo ritmo, sentindo a alegria simples daquela união.

A mensagem mais importante da música nos dias de hoje nos aconselha a não ouvir aqueles que dizem que as culturas são irreconciliáveis e não podem conviver em paz. Já cantei em muitos países, para plateias de todas as cores, que quase nunca entendem o significado das minhas canções; apesar disso, em cada apresentação sinto o mesmo calor humano, a mesma alegria gerada pelas melodias e pelas danças. O sorriso no rosto dos fãs, tão parecido em todos os shows, é a minha verdadeira recompensa.

O acesso universal à música deve ser valorizado; temos de continuar a lutar contra a censura, apoiando os artistas que são forçados a se calar e denunciando as ditaduras que fazem isso. O que aconteceria se os cantores pop de hoje começassem a compor canções políticas como Bob Marley e Bob Dylan fizeram? E se Lady Gaga fizesse uma música promovendo a liberdade de expressão na China?

Quando a israelense Rita Jahanforuz canta as músicas iranianas de sua infância, as fronteiras políticas e religiosas começam a ruir - e seu sucesso, em ambos os países, me enche de esperança.

Nessa mensagem também está incluído o conselho que meu pai me deu há tantos anos: “Cante para unir e não para dividir!”.

* Angélique Kidjo é uma artista premiada que ajudou a colocar a música da África no cenário mundial. (Este texto faz parte da série "Fator de Mudança: Pauta Global 2013", com fotos e desenhos sobre eventos e tendências de 2012 que continuarão repercutindo em 2013.)