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Quem inspira ações por meio de bons exemplos nos dias atuais? Seis pensadores respondem

04/01/2014 06h00

Uma série de pensadores do mundo todo responde a Grande Questão: Quem são os líderes morais destes tempos?

Elif Shafak

  • Zeynel Abidin via The New York Times

    Elif Shafak é uma escritora turca, cujo livro mais recente se chama "The Forty Rules of Love"

Poucas pessoas são capazes de se conectar com os outros seres humanos com tanta beleza e poder quanto Rumi. Nascido no século 13 no Afeganistão, ele passou a maior parte de sua vida na Turquia e escreveu em persa. Um homem de muitas culturas, seus escritos ultrapassam barreiras nacionais, religiosas e de gênero.

Eu estava na faculdade quando conheci a poesia de Rumi. Feminista de esquerda e anarco-pacifista, eu devorava clássicos ocidentais, pois não tinha interesse pelo misticismo islâmico. Porém, eu amava livros e os livros abriram portas nas quais eu jamais teria batido. Uma delas me levou a Rumi.

Rumi era muitas coisas de uma vez: poeta, professor, amante e pai, mas também um grande contador de histórias. Ele celebrava a música, a dança e a criatividade, pois as via como pontes para o divino. Sua visão de mundo era centrada no amor. Ao invés de temer a punição do inferno, ou esperar uma recompensa no céu, ele se concentrava no aqui e agora. Em meio ao caos e ao derramamento de sangue, ele era uma voz de calma, compaixão e formou um centro onde pessoas de todas as religiões eram bem vindas.

Rumi era um homem de palavras, tanto quanto era um homem de silêncio. Era um orador que não pregava, um crente que não julgava quem não compartilhava suas crenças. Era um estudioso, mas sabia que é possível aprender mais com o coração do que com a mente. Rumi celebrava a diversidade e a interconectividade, destacando-se drasticamente dos que dizem que o Islã é essencialmente incompatível com a cultura ocidental.

Essa voz pacífica, que afirma a vida e olha para dentro de si no mundo islâmico precisa ser mais ouvida hoje do que nunca. Se sabemos dos terroristas que mataram mulheres e crianças no Quênia, mas nunca ouvimos falar de Rumi – em outras palavras, se o fanatismo fala mais alto que a paz –, nós estamos todos condenados.

Quando Rumi morreu, muçulmanos, cristãos e judeus foram a seu funeral. Quantos de nós podemos sonhar com um final desses? Tantos de nós vivemos em guetos mentais, cercados de conforto da mesmice. Porém, pessoas como Rumi nos lembram de que estereótipos e dogmas são um produto de nossas mentes. Por trás de todas as aparências, somos e sempre fomos um só.

Salam Fayyad

  • Rina Castelnuovo/The New York Times

    Salam Fayyad é o ex-primeiro-ministro da Autoridade Palestina

À medida que o fim de Nelson Mandela se aproxima, seu legado brilha mais forte do que nunca. O homem que dedicou sua vida à causa universal da justiça continua a ser um luz no fim do túnel para todos os que lutam pela liberdade.

Junto com o resto do mundo, os palestinos viram Mandela se tornar um símbolo universal da luta pela autodeterminação e pela igualdade humana. Seu questionamento constante era um exemplo do imenso poder da não violência na resistência contra o encarceramento da vitimização e na superação dos fardos da injustiça.

Este ano marca o 20º aniversário do Acordo de Oslo. Enquanto um palestino que sempre se sentiu encorajado pela marca indelével de Mandela na história do progresso humano, acredito que seu legado seja especialmente pertinente neste momento da história, 20 anos depois de um ato de grande coragem política que, infelizmente, não concretizou sua promessa de uma paz justa e duradoura.

Veneramos Mandela pela mensagem transformadora que carregou com generosidade ilimitada – uma mensagem de união e irmandade em face da divisão e da intolerância, de transformação pacífica e justiça na presença da violência gratuita e da opressão. Sua mensagem despertou o mundo para o princípio fundamental defendido por Martin Luther King Jr. – "a verdadeira paz não é apenas a ausência de tensões; e sim a presença da justiça".

A presença da justiça exige que a assimetria fundamental no equilíbrio de poder entre o invasor e o invadido seja reavaliada. Vinte anos depois de os palestinos terem reconhecido o direito à existência plena de Israel, em paz e segurança, Israel deveria fazer o mesmo e reconhecer nosso direito de termos um Estado plenamente soberano. Israel deveria se preparar para aceitar a data exigida internacionalmente para dar fim às ocupações e aceitar um caminho mutuamente reconhecido para alcançarmos esse objetivo. No interim, a justiça também exige que todas as práticas que minam nosso direito de viver com dignidade em nosso território, ou que impedem nossa busca por liberdade e justiça, enquanto perseveramos em nossa tentativa de construir nosso estado e de aprofundar nossa preparação para nosso reconhecimento enquanto Estado.

Uma vida de indignidades ensinou Mandela que "não existe paixão nos objetivos pequenos – em aceitar uma vida que é menor do que a que se é capaz de viver”. Se a sua história nos ensina algo, é que as pessoas que não têm o direito de viver em plena igualdade humana jamais aceitarão uma vida que lhes ofereça menos do que merecem.

Liao Yiwu

  • Colin Delfosse/The New York Times

    Liao Yiwu é um poeta chinês exilado e autor do livro "Deus é Vermelho". Ele vive em Berlim

Minha autoridade moral é Confúcio. Ele pode ser considerado o pai do exílio político.

Confúcio nasceu em circunstâncias humildes. Ele viveu muitas dificuldades, mas perseverou apesar de todas as dificuldades e se tornou um mestre conhecido pelo conhecimento e pela integridade. Ele fundou uma escola e teve mais de 3.000 alunos, dos quais 72 se destacaram como grandes discípulos.

Confúcio também alcançou um alto cargo político no estado de Lu. Lá ele mostrou resultados logo no primeiro ano de governo; no segundo ano houve uma colheita abundante e, no terceiro, a honestidade havia tomado conta da sociedade. Mas, em seguida, um estado vizinho que temia que Lu se tornasse rico e forte demais, enviou espiões para espalhar rumores sobre Confúcio. Além disso, eles enviaram uma trupe de teatro com 80 mulheres bonitas para seduzir autoridades do estado de Lu. Líderes e pessoas importantes de Lu se esqueceram completamente da boa governança enquanto se refastelavam em sexo e lazer. O programa de reformas de Confúcio foi subvertido e ele quase foi assassinado. O sábio fugiu na mesma noite e ficou exilado por 14 anos.

Confúcio vivia cercado por muitas pessoas, o que lembra a miríade de pessoas em torno do Dalai Lama. A diferença é que depois de fugir do Tibete, o Dalai Lama lançou raízes na Índia e estabeleceu um governo no exílio. Confúcio liderou seus seguidores em uma vida de andanças. Eles viajaram por mais de uma dúzia de Estados e nunca se estabeleceram.

Essa foi uma era de terror; a vida era difícil e o Confúcio exilado não sabia qual seria seu destino. Em viagens longas, ele levava consigo o "I Ching", ou "Livro das Mutações", analisando os trigramas para evitar problemas e procurar a boa fortuna. Em seus últimos anos, ele passou a anotar e corrigir o livro, definindo a versão que chegou aos dias de hoje.

Desde minha prisão por ações ligadas aos acontecimentos na Praça da Paz Celestial em junho de 1989, usei sua versão do "Livro das Mutações" para analisar os trigramas. Inúmeras vezes eu me encontrei com o compilador, Confúcio, como se estivéssemos na mesma situação e compartilhássemos o mesmo idioma.

Confúcio disse: "O tempo passa como um rio que flui e nunca mais volta". Antes eu não compreendia essa afirmação e me perguntava: "Se o tempo passa como um rio que flui e nunca mais volta, qual é o significado de 'pátria' para um exilado político como eu?" Ele estaria no "Livro das Mutações", ou nos "Registros do Historiador", de Sima Qian, esses famosos livros da história chinesa?

Um dia, todos os líderes políticos caem. A terra natal pode se tornar o Estado inimigo por algum tempo e, se alguém ficar exilado por tempo o bastante, um velho Estado inimigo pode se tornar sua nação adotiva. Sendo assim, qual é afinal o significado de exílio e retorno?

Depois de 14 anos no exílio, o velho e machucado Confúcio foi autorizado a voltar para sua terra natal. Ele já tinha quase 70 anos, decaía como uma vela que se apaga e não representava mais perigo. Seus oponentes políticos já estavam mortos. Seu maior discípulo, Yan Hui, havia morrido de fome, seu seguidor mais devotado, Zi Lu, havia morrido em batalha. Confúcio se perguntou o que lhe restava da vida?

Ele se sentiu desanimado em relação a sua casa e seu país. Nos últimos três anos de sua vida, ele se concentrou em colecionar livros antigos e nos deixou uma rica herança cultural.

Em seu último dia de vida, com o frio entrando em seus ossos, ele sussurrou:

O Monte Tai irá ruir.

O templo irá cair.

O sábio ira murchar.

Mais de um século depois, seu seguidor Mencius disse: "Se Confúcio não tivesse nascido, essa longa noite não teria uma lanterna iluminada".

Rowan Williams

  • Tim Ashley via The New York Times

    Antigo 104º arcebispo de Canterbury, Rowan Williams é chanceler da Universidade de South Wales (Reino Unido)

Dag Hammarskjold, o segundo secretário-geral da ONU, representou a reunião de uma atitude ativa e contemplativa. Ele reconheceu que o detentor de um cargo público não deve conservar ansiosamente sua posição, nem se preocupar com ganhar discussões. Ele tinha plena consciência das sombras por trás de sua motivação e as confrontava com paciência e sem remorsos em suas anotações particulares. Ele esperava que outros compartilhassem de sua autorreflexão cuidadosa e utilizassem a plataforma do secretário-geral para gerar esse tipo de questionamento. Além disso, ele manteve viva a própria disciplina espiritual em meio às circunstâncias mais exigentes, sem deixar de ser discreto frente ao público: ele não precisava falar a respeito de seu comprometimento religioso para ser aplaudido por todos.

Essa é a imagem de um político adulto em um mundo muito infantil. Pode-se dizer que ele esperava demais dos políticos profissionais e de todos aqueles cujo trabalho é defender os interesses locais. Porém, ele oferecia uma perspectiva sem a qual toda essa política seria vazia. Seu trabalho e suas palavras declararam que é possível ver mundo através do que pode ser chamado de desprendimento criativo e sem sentir pena de si mesmo.

Ao contemplar a vida de Hammarskjold, me vejo com duas reflexões desconfortáveis. A primeira é que era isso o que eu deveria tentar fazer em minhas próprias investidas na vida pública, mas como fui plenamente incapaz de fazê-lo. A segunda é: uma quantidade terrível de retóricas públicas prevê que somos incapazes e temos medo de assumir esse nível de visão, fala e sentimento. Ainda assim, em nível privado, a maioria de nós é capaz de ver ao menos parte disso, e de agir nesse sentido. Por que nossa linguagem pública é tão corrupta e corruptível?

Mikhail Khodorkovsky

  • Alexander Nemenov/AFP

    Mikhail Khodorkovsky é o ex-diretor da petrolífera Yukos e está preso na colônia penal de Karelia, na Rússia

Para mim, minha mãe sempre foi uma autoridade moral inegável.

Ela não teve uma vida fácil. Porém, a Rússia sempre foi a terra dos destinos difíceis. Seu pai, um bolchevique, foi expulso do Partido Comunista por se casar com minha avó, que era considerada uma "inimiga de classe" em função de seu passado nobre.

A infância de minha mãe coincidiu com os anos da guerra. Evacuações; o frio e as terríveis condições de vida nos campos de refugiados; tuberculose. Naquela época, era quase impossível um civil ser tratado para se curar desta doença mortal na Rússia – todos os antibióticos do país eram enviados para cuidar dos feridos no campo de batalha.

Mas, por um milagre, ela sobreviveu.

Ela sempre sonhou em se tornar médica, mas acabou trabalhando em uma fábrica. Ao todo, ela ficou 40 anos lá, praticamente o tempo todo no mesmo departamento. Foi lá que ela encontrou meu pai e os dois estão juntos há 55 anos.

Quando tinha 45 anos, minha mãe descobriu que tinha câncer em estado avançado. As condições precárias na fábrica haviam custado caro. Cirurgias muito delicadas; diversas vezes; quimioterapia; e mais do mesmo.

Outra vez, a sorte estava ao seu lado – minha mãe entrou em uma longa fase de remissão.

A vida foi dura. A pergunta do que iríamos comer na próxima refeição talvez não fosse feita todos os dias, mas, ainda assim, sempre estava lá. Na fila para receber os cupons de alimentação e, novamente na fila para trocá-los por alimentos.

Nunca em minha vida eu me lembro de ter visto minha mãe reclamar ou entrar em desespero. Só posso imaginar o que se passava em sua mente. Contudo, em seu rosto sempre havia um sorriso e a cabeça sempre esteve orgulhosamente erguida.

Agora minha mãe tem quase 80 anos e está novamente enfrentando o câncer e diversas cirurgias. Seu filho está há 10 anos na prisão e existem boas chances de que ambos nunca voltem a se ver fora da prisão.

Mas minha mãe não desiste.

Viagens, dezenas de visitas, e ela sempre manteve a cabeça erguida.

Meus pais nunca me disseram o que pensavam do regime soviético. Eles não queriam que eu sofresse o destino de um dissidente. Apenas uma vez, depois que saí para trabalhar para a Liga dos Jovens Comunistas, minha mãe me disse que tinha vergonha de mim. Na época eu não entendi. Mas eu compreendi tudo mais tarde, quando estava na barricada em frente à Casa Branca em 1991.

Mãe, você nunca terá vergonha de mim outra vez.

Sri Mata Amritanandamayi

  • The New York Times

    A guru hindu indiana, Sri Mata Amritanandamayi é conhecida como Amma (Mãe) e reverenciada por seus seguidores como a "santa que abraça"

Infelizmente a liderança moral está em falta nos governos do mundo este ano – um momento de guerras, de violência e desastres naturais causados por nossa própria ganância e incapacidade política, Porém, felizmente existem pessoas que não conseguem ver alguém sem comida, roupas, abrigo, educação ou tratamento médico sem tentar ajudar. Esses são os líderes morais dos dias de hoje; sua compaixão aquece meu coração e me enche de otimismo em relação ao futuro.

Não faz muito tempo, um jovem me entregou um envelope com 300 euros e disse que queria que aquele dinheiro fosse usado para ajudar os órfãos em nossa comunidade. Eu pedi para que guardasse o dinheiro, que havia ganhado em uma competição musical, mas ele se negou.

Duas semanas depois, sua irmã veio até mim com um envelope que continha sua mesadinha para o sorvete. Ela disse aos pais: "Eu como sorvete o tempo todo. Agora eu quero doar para os órfãos, como meu irmão". A compaixão da irmã foi despertada pela integridade moral do irmão.

Durante o fechamento do governo, um homem decidiu cortar a grama em torno do Lincoln Memorial, com um serviço prestado ao seu país. Naquele momento ele havia se tornado um líder moral. O universo é como uma grande rede; se um canto se move, uma vibração pode ser sentida no todo.

Após o terremoto no Japão em 2011, cientistas e técnicos da usina nuclear de Fukushima enfrentaram grandes riscos ficando no local para proteger os reatores. Até agora a usina ainda não está totalmente segura e, apesar dos riscos, algumas dessas pessoas continuam trabalhando na área. Se não fosse pela vontade de ficar de alguns, milhões de pessoas poderiam ser afetadas.

Todos somos capazes de atos de altruísmo. Para permitirmos que nossa compaixão atinja o máximo de sua capacidade, devemos ver nossa própria essência humana em tudo e todos que nos cercam. Se começarmos a cuidar dos pobres e desprovidos com o mesmo carinho que cuidamos de nós mesmos – tentando sentir sua dor como se fosse nossa – o senso de unidade da humanidade despertaria e, junto com ele, a compaixão.

Em 2014, que os líderes de todas as nações se lembrem de que pertencem aos cidadãos e que possam  ver que esse mundo é como uma flor, na qual cada nação é uma pétala. Que possam ver que o bem-estar de cada pétala afeta a vida e a beleza do todo.