Comer por prazer ou saúde? Chef põe dilemas da alimentação na mesa
Réveillon de 2049: o que será que estaremos comendo daqui a 35 anos?
É bem provável que a mesa do futuro varie de acordo com muitos fatores -- de recursos reduzidos ao crescimento da população mundial, passando pela consciência do impacto que os alimentos têm na saúde e fenômenos culturais como fetichismo, hedonismo culinário e rituais.
Para ter uma ideia do que não vamos comer, talvez seja bom analisar os conselhos que nos foram dados nos últimos cem anos para saber o que deles resultou.
Na década de 1930, a empresa de produtos químicos DuPont adotou o slogan (parafraseado): "Vida melhor através da química" e, sob vários aspectos, foi essa a ideia que pairou sobre a evolução alimentar e as substâncias relacionadas a ela no século passado: desde a gordura vegetal hidrogenada ao queijo em lata, trocamos a comida de verdade pela conveniência. Não tenho dúvida alguma de que, de uns anos para cá, a nossa relação com a comida foi gravemente deturpada -- e não acho que seja um despropósito ligar esse desvirtuamento ao aumento das doenças modernas e o declínio dos recursos naturais.
Uma vez que a média do Índice de Massa Corporal no mundo desenvolvido vem mostrando um crescimento sólido há mais de cem anos e que os níveis de doenças autoimunes, diabetes tipo 2 e outros problemas modernos só fazem crescer, me parece que a nossa relação com a comida se tornou muito mais antagônica. Muita gente encara as indulgências culinárias como verdadeiros pecados que devem ser neutralizados com penitência física. A pizza do sábado tem que ser purgada com 45 minutos de trabalho ininterrupto de pernas, em movimentos de oitos imaginários no elíptico, ao som do falatório frenético da CNN, até o controle digital me avisar que cumpri minha penitência pelo prazer de ontem.
Quanto mais nos tornamos ligados -- literalmente -- ao tacômetro, odômetro e calorímetro, mais nos desconectamos da relação natural com a comida. Como em outros aspectos de nossa cultura, parece que essas coisas ocorrem em ciclos: o que antes era sabedoria antiga vira tendência de ponta; o que hoje está na vanguarda da ciência, em breve será ofuscado por novas descobertas e tecnologias.
No início do século 20, o movimento futurista, fundado pelo poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti, afirmava que as pessoas "pensam, sonham e agem de acordo com o que comem e bebem". A comida se tornou uma substância a ser manipulada cientificamente e consumida a serviço de um ideal estético (como a carne esculpida e a ausência de utensílios).
Pois o Futurismo agora coincide com o movimento do pêndulo atual, que coloca a tendência ancestral em alta, evitando alimentos modernizados e adotando a noção da alimentação o mais próxima possível à dos nossos antepassados pré-agrícolas. Se compreendida dogmaticamente, é uma visão imperfeita, como acontece com qualquer absolutismo -- mesmo que eu me identifique com a premissa de que devemos consumir os alimentos a que nos adaptamos ao longo de milhares de anos e não a dieta rica em carboidratos e açúcar dos últimos séculos.
Onde estaremos em 35 anos? No equilíbrio entre um princípio e outro? Chegaremos à conclusão de que a relação evolucionária com a comida é tão imperfeita quanto as previsões dos futuristas em relação às cápsulas alimentares e perfumes químicos? Ou será que alcançaremos o ponto da virada e nos tornaremos tão conscientes -- ou talvez tão cansados de modinhas -- que conseguiremos enxergar a imperfeição das lógicas passadas?
Tenho de pensar que continuaremos a esmiuçar nossa relação com a comida, já que isso parece ser tão intrínseco no nosso comportamento. Hoje em dia há centenas de dispositivos usáveis que monitoram nossas atividades e controlam nossos hábitos; uma vez que a tecnologia faz cada vez mais parte da nossa natureza, esses aparelhos continuarão a se modificar e evoluir.
Entretanto, tenho a leve suspeita de que por mais que a ciência continue provando que nem todas as calorias são iguais, estaremos mais inclinados a comer aquilo a que nossos corpos se acostumaram ao longo de milênios -- do contrário continuaremos a sofrer as consequências dos vários problemas de saúde que poderiam perfeitamente ser evitados.
O "locavorismo" e a "sazonalidade" são as novas tendências -- mas na verdade era assim que nós, humanos, nos alimentávamos antes do advento da preservação dos alimentos, das cadeias de fornecimento complexas e do compartilhamento instantâneo de informações.
Eu me lembro claramente, há 25 anos, quando visitei a Espanha pela primeira vez, de ficar chocado com o pequeno número de mercadinhos e o grande número de feiras livres. O peixe vendido ali vinha das águas regionais; frutas, verduras e legumes, da região agrícola mais próxima. Da última vez que visitei o país, notei a proliferação de mercados bem maiores, todos padronizados, e muitas cadeias de fast-food.
Embora as feiras continuem tão movimentadas quanto antes, as pessoas que as frequentam parecem estar divididas em dois grupos: senhorinhas comprando produtos frescos e o resto do mundo tirando fotos dos alimentos para atualizar o perfil nas redes sociais.
Essa obsessão fetichista com a comida é ainda mais evidente no número cada vez maior de chefs famosos e programas de TV, sites e blogs de culinária. Porém, toda essa atenção não parece aliviar a verdadeira crise corporal e ambiental que vivemos, resultado de nossos sistemas modernos altamente desenvolvidos. De fato, a taxa de obesidade na Espanha mais que dobrou nos últimos 25 anos, com o sobrepeso infantil e as doenças crônicas em ascensão -- e, pelo visto, o aumento dos problemas de saúde é proporcional à queda da culinária tradicional.
O que isso significará daqui a 35 anos? Há um limite de maus-tratos para nossos corpos e nosso planeta -- e a menos que todos se resignem a viver mais com menos saúde, alguma coisa tem que ser feita.
Para tentar adivinhar o que estaremos comendo, precisamos pensar em todas as coisas que são afetadas pela forma como nos alimentamos. É comum eu me esquecer de que não sou um indivíduo, mas parte de uma comunidade complexa -- de células, fibras musculares, bactérias, sistemas nervosos e ossos. Também faço parte de uma comunidade maior, uma família, um círculo de amigos, um grupo de colegas, um bairro, uma cidade vibrante, um planeta inigualável. A forma como me alimento tem um impacto direto em todas elas -- em algumas mais explicitamente que em outras, mas cada uma afetada pelas escolhas que faço em relação ao que coloco na boca.
Afinal, desde que somos criaturas sociais, a comida é o centro de qualquer comunidade. Em termos bem básicos, formamos bandos, tribos, vilarejos e cidades para aumentar nossas chances de sobrevivência -- inicialmente para caçar e coletar; mais tarde, para cultivar e distribuir comida.
Onde estarão nossas comunidades em 35 anos? Como as escolhas que faremos sobre comida nos afetarão? Que escolhas serão essas? Estaremos consumindo proteína de carne de laboratório e insetos cultivados? Em defesa de ambos, o que não faltam são poderosos argumentos ambientais. Levaremos mais em consideração o impacto que a agricultura industrial tem na saúde do solo -- e consequentemente, na densidade de nutrientes de nossas frutas, legumes e verduras? Espero realmente que sim.
Se vocês tivessem me perguntado há cinco anos se eu me sentia otimista ou pessimista em relação ao futuro de nossa mesa, eu teria dito com certeza de que estávamos à beira de um desastre. Nos últimos 2,5 anos, porém, vivenciei uma mudança dramática na minha saúde, superando uma doença autoimune supostamente incurável sem nenhum tratamento médico invasivo. Descobri na pele como uma relação ruim com a comida pode dificultar enormemente ou até impedir o bem-estar, da mesma forma que vi que uma relação positiva com o que se come -- evitando alimentos processados, açúcares e grãos e apostando nas gorduras boas, proteínas e vegetais, como os seres humanos fizeram durante a maior parte de nossa existência -- pode torná-lo uma realidade.
Isso me dá esperança de que, em 35 anos, se nos apoiarmos uns aos outros para transformarmos essa relação antagônica atual com o alimento em algo positivo, poderemos melhorar nossas comunidades de dentro para fora, começando com o nosso corpo, nossa família, nosso bairro, nosso país e, por fim, o planeta.
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