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Falha na democracia: Índia é epicentro mundial da desnutrição

Nicholas Kristof

Em Lucknow (Índia)

17/10/2015 06h00

Estou em minha viagem premiada anual, na qual levo um estudante universitário em uma viagem para fazer reportagens. Estou visitando algumas aldeias da Índia com o vencedor, Austin Meyer, da Universidade de Stanford (EUA), para enfrentar um dos grandes enigmas do mundo: por que centenas de milhões de crianças aqui têm deficit de crescimento físico e mental?

A Índia é uma democracia vigorosa que enviou um satélite para Marte. No entanto, seus filhos são mais propensos a morrer de fome do que as crianças em países muito mais pobres na África.

Em uma falha notável da democracia, a Índia é o epicentro mundial da desnutrição: 39% das crianças indianas têm o crescimento retardado pela má nutrição, de acordo com números do governo (as outras estimativas são mais altas). Este número é pior na Índia do que em Burkina Fasso ou no Haiti, pior do que em Bangladesh ou na Coreia do Norte.

Aqui em Uttar Pradesh, um Estado vasto de 200 milhões de habitantes no norte da Índia, a desnutrição é ainda mais assustadora. Pelas contas do próprio governo, uma ligeira maioria de crianças menores de 5 anos de idade neste Estado são raquíticas --pior do que em qualquer país da África, exceto o Burundi, de acordo com dados do Relatório Global de Nutrição de 2015.

O maior custo do raquitismo não é estatura, mas o poder do cérebro. Vários estudos revelaram que a desnutrição no início da vida reduz a inteligência de uma forma que nunca pode ser recuperada. Os cérebros de crianças com deficit de crescimento não se desenvolvem adequadamente --você vê a diferença em exames de imagem do cérebro--, o que talvez explique por que as crianças com deficit de crescimento, em geral, abandonam a escola mais cedo.

“Nosso foco no nanismo não é por temer que as crianças vão ser muito baixas”, disse Shawn Baker, especialista em nutrição da Fundação Bill e Melinda Gates, que me acompanhou em visitas a áreas rurais aqui. “Estamos focados no nanismo porque aponta para o deficit do desenvolvimento cognitivo e porque as crianças correm o risco de morrer.”

A viagem premiada é uma oportunidade de lançar luz a questões que não são sexy, mas são as mais importantes. E quando centenas de milhões de crianças estão desnecessariamente desnutridas, de uma forma que atrapalha todas as suas vidas, isso deveria ser uma prioridade global.

Duas novas teorias ousadas estão surgindo para explicar por que a Índia se sai tão mal na nutrição infantil.

A primeira é que o baixo status da mulher leva a uma nutrição materna na Índia muito pior do que se acreditava anteriormente. As mulheres muitas vezes comem por último nos lares indianos e 42% estão abaixo do peso antes da gravidez, de acordo com Diane Coffey, uma economista da Universidade de Princeton (EUA). Em seguida, durante a gravidez, as indianas ganham apenas metade do peso recomendado.

“Em média, as mulheres na Índia terminam a gravidez pesando menos do que as mulheres na África subsaariana iniciam a gravidez”, escreveu Coffey na revista “Proceedings of the National Academy of Sciences”.

O resultado é que muitas crianças estão malnutridas desde o útero e nunca se recuperam.

A segunda nova teoria é a falta de saneamento, particularmente a defecação ao ar livre. Cerca de metade dos indianos defecam sem o uso de sanitários. O resultado é que as crianças contraem parasitas e infecções crônicas que comprometem a capacidade do intestino de absorver nutrientes: 117 mil crianças morrem de diarreia anualmente na Índia, de acordo com o Unicef.

Isso pode explicar uma anomalia: a mortalidade infantil é mais baixa para os muçulmanos indianos do que para os hindus, embora os muçulmanos sejam mais pobres. Uma razão pode ser que os aldeões muçulmanos são mais propensos a usar latrinas.

Esta é uma questão de vida ou morte. Os governos investem em tanques de guerra e caças para defender seu povo, enquanto a maior ameaça aos seus cidadãos vem do próprio cocô.

Ainda assim, poucos reconhecem o risco. Em todo o mundo, muito mais pessoas têm acesso a telefones móveis do que a banheiros. Isso porque os telefones são vistos como a maior prioridade. Nas aldeias que Austin e eu visitamos, os moradores em geral tinham celulares, mas muito poucos tinham banheiros. E menos ainda os usavam: é razoavelmente fácil os grupos de assistência construírem latrinas, mais difícil é levar as pessoas a usá-las.

Uma mulher que encontramos em uma aldeia, Sahliha Bano, tem uma filha de 11 meses de idade chamada Munni, gravemente desnutrida. A família não tem um banheiro (poucos na aldeia têm).

A própria Bano refletia outros fatores por vezes associados à desnutrição: é analfabeta e casou-se com cerca de 14 anos, e Munni é seu sexto filho. Bano rejeita o controle da natalidade porque acredita que é contra a vontade de Deus.

Estas são questões complexas, mas se o Afeganistão e Bangladesh conseguiram fazer grandes progressos (assim como certos Estados indianos, como Kerala), a Índia como um todo também pode. Manmohan Singh, ex-ministro da Índia, chamou a desnutrição infantil de “uma vergonha nacional”, mas ainda não há vontade política para solucioná-la.

Em vez disso, em um movimento político para ganhar o apoio de grupos religiosos que se opõem à ingestão de ovos fertilizados, o Estado de Madhya Pradesh recentemente rejeitou a ideia de servir ovos em programas de alimentação infantil. O resultado será um acréscimo às centenas de milhões de crianças com o desenvolvimento desnecessariamente retardado para o resto de suas vidas, enquanto uma grande nação se enfraquece.