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Aumento do turismo tira comida do prato dos cubanos

Funcionários trabalham em plantação de verdura em Alamar, em Cuba - Mauricio Lima/The New York Times
Funcionários trabalham em plantação de verdura em Alamar, em Cuba Imagem: Mauricio Lima/The New York Times

Azam Ahmed

Em Havana (Cuba)

10/12/2016 06h00

Para Lisset Felipe, a privação é uma faceta padrão da vida em Cuba, uma luta compartilhada por quase todos, seja suportando os blecautes ou procurando papel higiênico para comprar.

Mas este ano foi diferente, de uma maneira ainda mais fundamental, disse ela. Lisset não comprou uma única cebola este ano, nem um pimentão, ingredientes básicos da dieta cubana. O alho é uma raridade, segundo ela, enquanto o abacate, que desfrutava de vez em quando, praticamente desapareceu de sua mesa.

"É um desastre", disse Lisset, 42, que vende ar-condicionados para o governo. "Nunca vivemos com luxo, mas o conforto que tínhamos não existe mais."

As reformas em Cuba nos últimos anos muitas vezes sugeriram uma nova era de possibilidades: uma economia em lenta abertura, o aquecimento das relações com os EUA após décadas de isolamento, uma inundação de turistas que deveriam melhorar as fortunas dos cubanos, há muito encalhados na periferia da prosperidade moderna.

Mas a chegada recorde de quase 3,5 milhões de visitantes a Cuba no ano passado causou uma grande demanda por alimentos, produzindo efeitos cascata que perturbam a promessa da Cuba de Fidel Castro.

Os turistas estão literalmente comendo o almoço de Cuba. Graças em parte ao embargo dos EUA, mas também ao mau planejamento do governo de Havana, os bens com que os cubanos sempre contaram estão indo para os turistas ricos e as centenas de restaurantes privados que os atendem, causando um aumento dos preços e esvaziando as prateleiras.

Sem suprimentos para acompanhar o apetite crescente, alguns alimentos se tornaram tão caros que até os mais básicos estão ficando inacessíveis para os cubanos comuns.

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Trabalhadores limpam vegetais em mercado no centro de Havana
Imagem: Mauricio Lima/The New York Times

"A indústria privada do turismo está em concorrência direta por alimentos com a população em geral", disse Richard Feinberg, professor na Universidade da Califórnia em San Diego e especialista em economia cubana. "Há muitas consequências e distorções imprevistas."

Há muito existe uma divisão entre os cubanos e os turistas, com os balneários e os hotéis de Havana efetivamente reservados para estrangeiros dispostos a pagar caro por uma versão mais confortável de Cuba. Mas com o país fixando suas esperanças no turismo, recebendo uma nova onda de viajantes para alimentar a economia anêmica, surgiu uma desigualdade mais básica em meio ao experimento do país com o capitalismo.

O aumento dos preços de produtos básicos como cebola e pimentão, ou de luxos modestos como abacaxi e limão, deixou muitos cubanos incapazes de comprá-los. Cerveja e refrigerantes podem ser difíceis de encontrar, muitas vezes comprados no atacado pelos restaurantes.

É uma evolução surpreendente em Cuba, onde um futuro compartilhado sempre foi um pilar da promessa revolucionária. Enquanto o influxo de dinheiro novo dos turistas e outros visitantes tem sido uma bênção para o crescente setor privado da ilha, a maioria dos cubanos ainda trabalha dentro da economia estatal e luta para pagar suas contas.

O presidente Raúl Castro reconheceu o aumento dos preços agrícolas e agiu para contê-los. Em um discurso em abril, ele disse que o governo examinaria as causas do aumento dos preços e reprimiria os intermediários especuladores, impondo limites aos preços cobrados por certas frutas e legumes.

"Não podemos ficar de braços cruzados diante da ação inescrupulosa de intermediários que só pensam em ganhar mais", disse ele a membros do partido, segundo reportagens locais.

Mas os limites de preços do governo pouco fizeram para oferecer produtos bons e acessíveis aos cubanos. Em vez disso, eles simplesmente deslocaram os produtos para o mercado comercial, onde os agricultores e vendedores podem obter preços mais altos, ou para o mercado paralelo.

Havana oferece exemplos marcantes desse abismo crescente.

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Alfaces são cultivadas em fazenda de produção orgânica em Alamar
Imagem: Mauricio Lima/The New York Times

Em dois mercados dirigidos pelo Estado, onde o governo define os preços, as prateleiras na semana passada eram monumentos ao amido --batata-doce, mandioca, arroz, feijão e banana, mais algumas melancias malformadas com a casca pálida.

Quanto a tomate, pimentão, cebola, pepino, alho ou alface --para não falar em abacate, abacaxi ou coentro-- só havia promessas.

"Voltem no sábado para ver se há tomates", sugeriu um vendedor. Era mais uma pergunta que uma oferta.

Mas em um mercado cooperativo próximo, onde os vendedores têm mais liberdade para definir os preços, as frutas e legumes que não havia nas gôndolas estatais estavam apresentadas em abundância. Raridades como uva, alho-poró, gengibre e uma série de temperos disputavam a atenção dos compradores.

O mercado tornou-se o playground dos restaurantes particulares que brotaram para atender aos visitantes. Eles empregam compradores para vasculhar a cidade diariamente em busca de frutas, legumes e bens não perecíveis, com orçamentos que esmagam o de uma família comum.

"Quase todos os nossos compradores são 'paladares'", disse um vendedor, Ruben Martínez, usando o nome cubano para os restaurantes privados, que somam cerca de 1.700 estabelecimentos em todo o país. "São os que podem pagar mais por artigos de qualidade."

Pelos padrões cubanos, os preços eram astronômicos. Vários moradores cubanos disseram que simplesmente comprar meio quilo de cebola e meio quilo de tomate aos preços cobrados naquele dia consumiria cerca de 10% de um salário padrão do governo, de aproximadamente US$ 25 por mês (cerca de R$ 85).

"Eu nem me incomodo de ir a esses lugares", disse Yainelys Rodríguez, 39, sentada em um parque em Havana enquanto sua filha subia no escorregador. "Comemos arroz e feijão e um ovo cozido quase todo dia, às vezes um pouco de porco."

A família Rodríguez está na ponta inferior da escala de renda, por isso ela suplementa os ganhos com serviços de faxina esporádicos. Com isso, sustenta seus dois filhos e a mãe doente.

Tentar comprar tomate, disse ela, "é um insulto".

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Trabalhador avalia árvores frutíferas em fazenda
Imagem: Mauricio Lima/The New York Times

Outra mãe, Leticia Alvarez Cañada, descreveu como é preparar refeições decentes para sua família com preços tão altos. "Temos de ser mágicas", disse ela.

A luta é um pouco mais fácil agora que ela está no setor privado e não trabalha mais para o governo, afirmou. Leticia deixou o emprego de enfermeira para abrir um pequeno negócio vendendo torresmos fritos e outros lanches em um carrinho. Agora ganha cerca de dez vezes mais por mês.

"Os preços enlouqueceram nos últimos anos", disse Leticia, 41. "Simplesmente não há equilíbrio entre os preços e os salários."

Enquanto muitos cubanos aprenderam há tempo a realidade da carência, principalmente durante o chamado "Período Especial", depois do colapso da União Soviética, uma nova dinâmica que surgiu nos últimos meses ameaça o futuro do país, advertem especialistas.

"O governo falhou constantemente em investir de modo adequado no setor agrícola", disse Juan Alejandro Triana, um economista da Universidade de Havana. "Nós não temos mais de alimentar apenas 11 milhões de pessoas. Temos de alimentar mais de 14 milhões."

"Nos próximos cinco anos, se não fizermos algo a respeito, a comida se tornará um problema de segurança nacional aqui", concluiu.

O governo dá aos cubanos cadernetas de rações para ajudar a fornecer alimentos básicos como arroz, feijão e açúcar, mas não cobrem itens como produtos frescos. Os tratores e caminhões são limitados e frequentemente quebram, fazendo que os produtos agrícolas estraguem no caminho. A ineficiência, a burocracia e a corrupção em nível local também prejudicam a produtividade, enquanto a falta de fertilizantes reduz a produção (embora mantenha o volume de produtos orgânicos).

Os economistas também afirmam que tabelar os preços pode desencorajar os agricultores e comerciantes. Se os preços forem definidos muito baixos e não derem lucro, afirmam eles, para que trabalhar? A maioria tentará reencaminhar seus produtos para o mercado privado ou o paralelo.

"Do ponto de vista do agricultor, o que você faria?", perguntou Feinberg, o professor da Califórnia. "Quando os diferenciais são grandes, é preciso ser muito egoísta ou idiota para respeitar as regras."

Os "paladares" às vezes vão diretamente às fazendas para comprar produtos, e até fornecem aos agricultores sementes de produtos especiais que não crescem comumente em Cuba, como rúcula, tomate-cereja e abobrinha.

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Trabalhadores caminham em plantação de alface
Imagem: Mauricio Lima/The New York Times

A maioria admite que distorce o mercado de certa maneira, e neste ano o governo parou de emitir licenças para novos restaurantes em Havana. Mas alguns donos de restaurantes afirmam que é responsabilidade do governo criar um melhor abastecimento.

"É verdade, os preços continuam subindo", disse Laura Fernández, gerente do El Cocinero, uma antiga fábrica de óleo de amendoim transformada em um restaurante caro. "Mas não é só culpa do setor privado. Geralmente há muito caos e desordem no mercado."

Nos arredores de Havana, Miguel Salcines cultivou uma bela fazenda. Fileiras de plantações bem cuidadas se estendem até o fim de seus modestos 10 hectares, onde ele emprega cerca de 130 pessoas.

Apesar de cultivar produtos comuns a pedido do governo, não há outro que o entusiasme tanto quanto suas novas abobrinhas. Um agricultor há quase 50 anos, ele nunca tinha cultivado essa espécie, mas plantou um canteiro há dois meses.

Agora os legumes ganham forma, com as flores amarelas bem visíveis entre as folhas verdes. Ele sabe que essa produção não é para o mercado regular, ou para o governo. É como a rúcula que ele planta. É para o mercado de turistas e, por extensão, para o futuro.

"Estamos falando de um mercado de elite", explicou ele. "Os mercados cubanos são um mercado de necessidade."

* Colaboraram Hannah Berkeley Cohen e Kirk Semple, de Havana, e Frances Robles, de Miami