A Rússia não é a única: os Estados Unidos também interferem em eleições de outros países
Malas de dinheiro entregues em um hotel de Roma para certos candidatos italianos de sua preferência. Escândalos vazados para jornais estrangeiros, para mudar o resultado de uma eleição na Nicarágua. Milhões de panfletos, pôsteres e adesivos impressos para derrotar um presidente na Sérvia.
Seria influência de Vladimir Putin? Não, só uma pequena amostra do histórico de intervenção dos Estados Unidos em eleições de outros países.
Diretores de agências de inteligência americanas alertaram o Comitê de Inteligência do Senado que a Rússia parecia estar se preparando para repetir nas eleições de meio de mandato (legislativas) de 2018 o mesmo subterfúgio usado em 2016: hackeamentos, vazamentos, manipulações em mídias sociais e mais, possivelmente. Depois, na semana passada, o procurador especial Robert Mueller anunciou o indiciamento de 13 russos e três empresas, administradas por um empresário próximo do Kremlin, apresentando com impressionantes detalhes um esquema de três anos que envolvia o uso de mídias sociais para atacar Hillary Clinton, impulsionar Donald Trump e semear a discórdia.
É compreensível que a maioria dos americanos fique chocada com o que eles veem como um ataque sem precedentes contra nosso sistema político. Mas veteranos do serviço secreto e acadêmicos que estudam operações secretas têm uma visão diferente e bastante significativa.
"Se você pergunta a um agente do serviço secreto se os russos infringiram as regras ou fizeram algo estranho, a resposta é que não, de jeito nenhum", disse Steven L. Hall, que se aposentou em 2015 após 30 anos na CIA, onde foi diretor de operações da agência na Rússia. Os Estados Unidos "certamente" realizaram essas operações de influência em eleições ao longo da História, disse, "e espero que continuemos fazendo isso".
Loch K. Johnson, o decano dos acadêmicos da área de inteligência que começou sua carreira nos anos 1970 investigando a CIA como colaborador da Comissão Church do Senado, diz que a operação da Rússia em 2016 foi simplesmente a versão cibernética da prática corrente adotada pelos Estados Unidos por décadas, sempre que o governo americano estava apreensivo com alguma eleição estrangeira.
"Fazemos esse tipo de coisa desde que a CIA foi criada em 1947", disse Johnson, hoje na Universidade da Geórgia. "Nós usamos pôsteres, panfletos, mala direta, faixas, tudo. Plantamos informações falsas em jornais estrangeiros. Usamos aquilo que os britânicos chamam de ‘cavalaria do Rei George’: malas de dinheiro".
O desvio dos Estados Unidos de ideais democráticos às vezes ia muito além. A CIA ajudou a derrubar líderes eleitos no Irã e na Guatemala nos anos 1950 e apoiou golpes violentos em vários outros países nos anos 1960. Tramou assassinatos e apoiou governos anticomunistas brutais na América Latina, África e Ásia.
Mas, nas últimas décadas, argumentam tanto Hall quanto Johnson, as interferências da Rússia e dos Estados Unidos não foram equivalentes do ponto de vista moral. As interferências americanas em geral foram voltadas a ajudar candidatos não-autoritários a derrotar ditadores ou a promover a democracia. A Rússia em geral interveio para obstruir processos democráticos ou promover governos autoritários, disseram.
Igualar os dois, diz Hall, "é como dizer que policiais e bandidos são a mesma coisa porque ambos têm armas— a motivação faz diferença".
Esse histórico mais amplo de interferências em eleições tem estado ausente na enxurrada de reportagens sobre as intervenções russas e na investigação sobre o possível envolvimento da equipe de campanha de Trump. É um lembrete de que a campanha russa em 2016 foi fundamentalmente uma espionagem à moda antiga, ainda que tenha explorado novas tecnologias. E ilustra as correntes mais amplas da história que motivaram as intervenções eleitorais dos Estados Unidos durante a Guerra Fria e motivam as ações da Rússia hoje.
Um estudioso da Universidade Carnegie Mellon, Dov H. Levin, vasculhou os registros históricos de operações de interferência eleitoral, tanto abertas quanto secretas. Ele encontrou 81 efetuadas pelos Estados Unidos e 36 pela União Soviética ou pela Rússia entre 1946 e 2000, embora a contagem russa esteja sem dúvida incompleta.
"Não estou de forma alguma justificando o que os russos fizeram em 2016", disse Levin. "Foi completamente errado da parte de Vladimir Putin intervir dessa maneira. Dito isso, os métodos que eles usaram nessa eleição foram a versão digital dos métodos usados tanto pelos Estados Unidos quanto pela Rússia durante décadas: invadir sedes de partidos, recrutar secretários, colocar informantes dentro de um partido, passar informação ou desinformação a jornais".
Suas descobertas ressaltam como a interferência em eleições por parte dos Estados Unidos— às vezes secretamente, às vezes bem abertamente— tem sido rotineira.
O precedente foi criado na Itália com a ajuda a candidatos não-comunistas desde o final dos anos 1940 até os anos 1960. "Tínhamos sacolas de dinheiro que entregávamos para certos políticos para custear suas despesas", disse F. Mark Wyatt, um ex-agente da CIA, em uma entrevista de 1996.
A propaganda secreta também tem sido um dos pilares. Richard M. Bissell Jr., que dirigiu as operações da agência no final dos anos 1950 e começo dos anos 1960, escreveu casualmente em sua autobiografia sobre como se "exercia controle sobre um jornal ou um canal, ou se garantia o resultado desejado em uma eleição". Um relatório antes sigiloso sobre o trabalho da CIA na eleição de 1964 do Chile se vangloria do "grande trabalho" que a agência fez ao fornecer "enormes quantias" a seu candidato preferido e ao retratá-lo como um "estadista sábio, sincero e nobre" enquanto representava seu oponente de esquerda como um "conspirador calculista".
Agentes da CIA disseram a Johnson no final dos anos 1980 que "inserções" de informação na mídia estrangeira, na maior parte das vezes corretas, mas às vezes falsas, chegavam ao número de 70 a 80 por dia. Na eleição da Nicarágua em 1990, a CIA plantou notícias sobre corrupção dentro do governo de esquerda sandinista, disse Levin. A oposição venceu.
Com o tempo, outras operações de influência dos Estados Unidos foram organizadas não secretamente pela CIA, mas abertamente pelo Departamento de Estado e afiliados. Para a eleição de 2000 na Sérvia, os Estados Unidos financiaram uma bem-sucedida tentativa de derrotar Slobodan Milosevic, o líder nacionalista, fornecendo consultores políticos e milhões de adesivos com o símbolo do punho cerrado da oposição e a frase "É o fim dele" em sérvio, impressos em 80 toneladas de papel adesivo e entregues por um fornecedor terceirizado de Washington.
Vince Houghton, que serviu o Exército nos Bálcãs na época e trabalhou de perto com agências de inteligência, disse ter visto ações dos Estados Unidos em toda parte. "Deixamos muito claro que não tínhamos nenhuma intenção de deixar que Milosevic permanecesse no poder", disse Houghton, hoje historiador do Museu Internacional de Espionagem.
Tentativas similares foram feitas em eleições do Iraque e do Afeganistão, em tempos de guerra, nem sempre com sucesso. Depois que Hamid Karzai foi reeleito presidente do Afeganistão em 2009, ele se queixou a Robert Gates, na época secretário de Defesa, sobre a descarada tentativa dos Estados Unidos de derrotá-lo, que Gates chama em seu livro de memórias de "nosso golpe desastrado e fracassado".
Pelo menos uma vez os Estados Unidos se intrometeram descaradamente em uma eleição russa. Os temores dos Estados Unidos de que Boris Yeltsin fosse derrotado em sua tentativa de se reeleger presidente em 1996 por um comunista das antigas levaram a esforços abertos e secretos de ajudá-lo, encorajados pelo presidente Bill Clinton. Entre eles, uma pressão americana por um empréstimo de US$ 10 bilhões do Fundo Monetário Internacional para a Rússia quatro meses antes da eleição e uma equipe de consultores políticos americanos (embora alguns russos tenham zombado quando levaram crédito pela vitória de Yeltsin).
Essa indiscreta intervenção deixou alguns americanos incomodados. Thomas Carothers, um acadêmico do Carnegie Institute for International Peace, lembra-se de ter discutido com um funcionário do Departamento de Estado que lhe disse na época, "Yeltsin é a democracia na Rússia", ao que Carothers teria lhe respondido, "Não é isso que significa democracia".
Mas o que significa democracia? Ela pode incluir um enfraquecimento secreto de um ditador ou uma ajuda secreta a oponentes que tenham valores democráticos? E quanto a financiar organizações de cidadãos?
Nas últimas décadas, a presença mais visível dos Estados Unidos na política de outros países tem sido os grupos financiados por contribuintes como o National Endowment for Democracy, o National Democracy Institute e o International Republican Institute, que não apoiam candidatos, mas ensinam habilidades básicas de campanha, constroem instituições democráticas e treinam monitores de eleições.
A maioria dos americanos vê tais esforços como benignos —de fato, caridosos. Mas Putin os vê como hostis. O National Endowment for Democracy fez doações anos atrás a Alexei Navalny, hoje a nêmesis política de Putin. Em 2016, o instituto fez 108 doações no total de US$ 6,8 milhões (R$ 22 milhões) a organizações na Rússia para propósitos como "engajar ativistas" e "fomentar engajamento dos cidadãos". O instituto não cita mais o nome dos contemplados russos, que, segundo as leis russas que reprimem o financiamento estrangeiro, podem sofrer perseguição ou serem presos.
É fácil entender por que Putin vê esse dinheiro americano como uma ameaça a seu governo, que não tolera nenhuma verdadeira oposição. Mas veteranos americanos da promoção da democracia acham repulsivas as insinuações de Putin de que o trabalho deles é equivalente ao que o governo russo é acusado de estar fazendo hoje nos Estados Unidos.
"Não é como comparar alhos e bugalhos", disse Kenneth Wollack, presidente do National Democratic Institute. "É comparar alguém que entrega remédios que salvam vidas com alguém que traz venenos letais".
O que a CIA pode ter feito nos últimos anos para interferir em eleições de outros países ainda é segredo, e pode permanecer assim por décadas. Pode ser pouco em comparação com a manipulação efetuada pela agência durante a Guerra Fria. Mas alguns veteranos não têm tanta certeza disso.
"Presumo que eles estejam fazendo muito do que se fazia antes, porque, você sabe, as coisas não mudam", disse William J. Daugherty, que trabalhou para a CIA de 1979 a 1996 e chegou a ser responsável por avaliar operações secretas. "A tecnologia pode mudar, mas os objetivos não mudam".
* Scott Shane é repórter de segurança nacional para o "New York Times" e ex-correspondente em Moscou
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