Era novembro de 2018. Jair Bolsonaro estava eleito havia pouco mais de um mês. Numa noite abafada, eu jantava com os jornalistas Carol Pires e o norte-americano Jon Lee Anderson, que estava no Rio para escrever o perfil do próximo presidente para a revista The New Yorker. Estávamos na varanda de um restaurante metido a besta em Ipanema quando começamos a ouvir gritos. Um jovem negro berrava "eu não fiz nada, para, por favor, para", enquanto era arrastado por dois policiais para dentro de uma viatura. O homem resistia, chorava, enquanto guardadores de carros e porteiros de prédios à volta tentavam falar para os policiais que ele era conhecido na área, que não era bandido, que aquilo não devia estar acontecendo. Levantei da mesa e fui ter com eles. Perguntei o que havia acontecido, por que faziam aquilo, que soltassem o sujeito — que já exibia sinais de que havia sido espancado. Um deles informou que ele tinha sido acusado de roubo por uma mulher a poucos metros dali e estava sendo levado para a delegacia. Quis saber que provas tinham contra ele e por que tinha sido agredido. Enquanto pedia explicações, o policial mais novo se aproximou de mim, cortou minha fala e, num tom misto de ordem e desprezo, disse: "Vai embora daqui, vai lavar uma louça!". Fiquei completamente aturdida, sem reação. Passei a dizer que me falassem também com respeito, que aquilo era absurdo, que eu era uma cidadã etc, etc, etc. Estava estupefata. Nunca havia sido tratada por uma autoridade daquela maneira. Por ninguém, aliás. Viraram as costas, enfiaram o homem no carro, aceleraram sem olhar para trás mesmo já com uma pequena multidão como testemunha. Eu tremia quando voltei à mesa. Não se soube o que aconteceu depois. Ontem (29), Anderson chegou ao Rio para cobrir novamente as eleições e me mandou uma mensagem lembrando a história, que foi brevemente relatada em sua reportagem à época. Comentou que aquele episódio tinha ficado em sua memória como um "turning point", como o começo do que viria a se tornar o bolsonarismo do dia a dia. Que o inaceitável abuso contra pobres e negros por autoridades policiais continuava como uma intolerável rotina no país, mas aquela cena tinha trazido um componente novo: o guarda da esquina e o mandar "lavar uma louça" a uma mulher branca. Segundo ele, havia ali muitas contradições do país: eu querendo ser obedecida por alguma razão de classe, e ele exercendo seu pequeno poder, destilando misoginia, com violência desmesurada, com a superioridade que a arma em sua cintura lhe conferia. "O que me chamou atenção foi que um incidente pequeno e, infelizmente, corriqueiro, dizia muito sobre como a sociedade estava mudando", comentou Anderson. "Aquele comportamento escandaloso da polícia já mostrava a tendência do rebaixamento do nível do discurso trazido por Bolsonaro." Atribui-se a Pedro Aleixo, vice-presidente do marechal Costa e Silva, o célebre comentário sobre os riscos do AI-5, decretado em 13 de dezembro de 1968, quando se inaugurava o período mais feroz da ditadura militar: "O problema deste ato", teria dito Aleixo, "não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país, mas o guarda da esquina". Referia-se a esse autoritarismo difuso, danoso e nefasto, que sempre assombrou a sociedade brasileira e que agora aparecia sob novos matizes. Depois daquilo, soube de muitos outros casos. Vários foram parar nas notícias. Desde o do dono de um bar boêmio que foi levado à delegacia por ter feito uma homenagem à vereadora Marielle ao casal que foi impedido por PMs de se vacinar contra covid-19 por vestir uma camiseta antibolsonarista. Só que o guarda da esquina não necessariamente está fardado. Ele é qualquer um. Ele é o agente penitenciário que matou o militante do PT na sua festa de aniversário; o homem que entrou no bar, perguntou quem votava em Lula e esfaqueou o primeiro que respondeu; o aposentado que saiu com uma arma no coldre por Copacabana querendo saber quem era contra Bolsonaro; o outro que gravou um vídeo lambendo uma escopeta e pedindo golpe; os feminicidas que se multiplicaram feito ratos; os homofóbicos, os machistas, os racistas, orgulhosos de seu pequeno poder de esquina e que acham que deveríamos estar mesmo lavando louças, que todos os pretos são bandidos, que todos os gays deveriam ser varridos do mundo. Ao que tudo indica, Bolsonaro deve deixar o governo em breve. E ao que tudo indica, os bolsonaristas violentos não vão desaparecer com ele. Tampouco o vil guarda da esquina que, nunca antes na história desse país, havia se sentido tão empoderado e à vontade para cometer suas pequenas atrocidades diárias. Em uma entrevista recente para a revista da Unicamp, o filósofo Marcos Nobre, presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), disse acreditar que o bolsonarismo vai continuar vivo de maneira inédita na política brasileira: através do que ele chamou de "partido digital bolsonarista", que não é um partido formalmente instituído, "mas que é muito organizado e muito poderoso, dono de uma máquina de desinformação e de propaganda muito efetiva que vai atuar nos próximos anos". Essa legenda virtual teria todas as ferramentas para continuar atacando a democracia e fazendo oposição desleal, aguardando as eleições de 2026 para voltar ao poder. Como é impossível reestruturar um país em frangalhos em apenas quatro anos, a chance é alta. Seus seguidores e apoiadores, portanto, continuariam ativos e presentes. Perguntei ao cientista político Oscar Vilhena, professor da Fundação Getúlio Vargas, autor de livros como "A batalha dos poderes: da transição democrática ao mal-estar constitucional", para aonde ele achava que iria o pequeno poder do guarda da esquina — de novo, que está com farda ou sem — na perspectiva de um novo governo. Ele disse que era preciso entender que o "guarda da esquina sempre esteve por aqui". A diferença era que, nos governos democráticos, os direitos humanos, o respeito ao Estado de Direito, faziam parte da agenda. Com Bolsonaro, houve um recrudescimento de perversões autoritárias, que nunca, de fato, tinham ido embora. "O poder dele vai estar lá, o que pode mudar é o novo governo realmente se dispor a tocar na ferida, o que não foi feito até hoje". Disse que houve "leniência" dos governos passados em temas como a reforma das polícias, em ser mais rigorosos com comportamentos arbitrários e violentos na sociedade. "O guarda da esquina precisa saber que um abuso terá consequências", disse. Mais uma vez, seria interessante prestar atenção e tentar compreender, com lentes nacionais, o que se passou nos Estados Unidos depois de Donald Trump. Ali, o poder do guarda da esquina continua firme. "Os policiais e outras autoridades das forças de segurança sentiram, pela primeira vez, que tinham um aliado, um guru ideológico, e criaram uma espécie de 'estado paralelo' para eles. Isso significou minar leis em seu nome e fazer o que fosse preciso para levar a cabo posições e políticas extremas", disse Anderson. "Nas polícias, na imigração e, o mais preocupante, no Poder Judiciário, o que inclui a Suprema Corte." Trump é o nome mais forte para concorrer contra Joe Biden em 2024. PUBLICIDADE | | |