Prezado senhor Augusto Aras, Numa de suas ironias mais afiadas contra o poder, George Bernard Shaw fazia uma relação entre a existência de um governo e a crueldade. Mas, com sua picardia, emendava: "nada é tão cruel quanto a impunidade". Ao longo dos últimos três anos e meio, tenho me perguntado: existiria um sistema pelo qual todas as instituições continuam a existir teoricamente e, ao mesmo tempo, estão esvaziadas de suas funções? Existiria um estado de direito anestesiado? Haveria espaço numa democracia para uma Justiça de fachada? O senhor desempenha um dos papéis mais relevantes em nossa República. Quem sou eu para explicar algo aqui. Mas, diante de uma era em que o óbvio se perdeu, vale ressaltar que seu cargo serve como uma espécie de pêndulo. Um garante do funcionamento das instituições. O elemento de equilíbrio. Ao ser propositiva, a Procuradoria-Geral da República provoca a atuação dos Poderes e inibe a inação e a omissão. Claro, quando há uma anomalia e ele não opera, o que a história nos conta é que o Executivo e os outros Poderes acabam tendo suas funções deturpadas. No fundo, a omissão do pêndulo contribui de forma decisiva para o estabelecimento de um sistema disfuncional. Eu não tenho idade para lembrar dos detalhes dos anos de chumbo no Brasil. Mas o senhor certamente sabe que, no regime militar, seu cargo era absolutamente controlado. De fato, se o senhor fosse o procurador-geral naqueles anos, teria de estar submetido ao Executivo. Sorte nossa que esse não é mais o caso. Havia também muita suspeita naquele momento de que o procurador-geral nada mais era que um mecanismo subjugado por grupos no poder. Basta lembrar do caso da corrupção na mandioca. O sujeito pegava empréstimos de bancos públicos para plantar. Mas inventava um sinistro e embolsava o dinheiro. Quando um procurador em Recife decidiu investigar, o então procurador-geral se apressou em retirar o caso de suas mãos. Tempos depois, foi descoberto que o motivo era simples: o envolvimento de um aliado dos militares no esquema da mandioca. Sem a sinalização de uma proteção institucional, o procurador que ousou investigar terminou morto, na porta de uma padaria. Hoje, eu me pergunto, quantos no Ministério Público Federal também se sentem neste momento desamparados? Senhor Aras, a realidade é que, na sociedade, há uma pergunta recorrente: onde está o procurador-geral? Por qual motivo, entre as dezenas de indícios e suspeitas, não houve uma abertura de investigação contra o atual presidente da República? Não faço a pergunta na forma de uma acusação. Afinal, não podemos cometer o crime de usar as instituições legais para perseguições políticas. Mas, ainda assim, questiono se abandonar por completo a função diante de tantas denúncias nos custará caro demais. Ao enterrar as denúncias coletadas pela CPI da Covid após a morte de quase 700 mil brasileiros, ao não atuar nos ataques de Jair Bolsonaro contra a democracia, ao silenciar diante da política de desinformação, ao pedir o arquivamento da investigação aberta contra o presidente no STF pelo vazamento de dados do inquérito sigilo da Polícia Federal sobre o ataque hacker contra o TSE, ao fechar os olhos diante dos ataques explícitos de Bolsonaro ao sistema eleitoral e ao ignorar os orçamentos secretos, muitos de nós nos perguntamos: onde está a missão constitucional de proteção da democracia que o senhor detém? Hoje, a sensação que reina no Brasil é de uma aura de impunidade, palavra repleta de dor. A impunidade como uma violação da obrigação do estado em proteger seus cidadãos. A impunidade como causa e consequência de outras violações de direitos humanos. A impunidade, enfim, como a violação em si. Há um consenso que o combate por parte do estado contra a impunidade serve como trincheira para evitar novos crimes. Sua omissão, portanto, não é apenas um fracasso. Mas uma estratégia deliberada de frear a conduta criminosa numa sociedade. Lutar contra a impunidade não serve apenas como um ato para garantir que um crime tenha um responsável. Mas para mandar uma mensagem de confiança à sociedade em relação às suas instituições. Diante da impunidade, sobreviventes prolongam seus traumas. Sob o manto da impunidade, o luto é sempre incompleto e a vitória é da narrativa do repressor. A impunidade de rebanho, de certa forma, se consolida em doses que ameaçam a saúde de uma sociedade. Recentemente o senhor minimizou as falas de Bolsonaro em diversos temas e as classificou como parte da liberdade de expressão, inclusive ao se referir à proliferação de armas. "O discurso do presidente é a retórica política, nós não temos muito o que fazer", disse o senhor em entrevista à agência Reuters. Mas percorri o interior do país e descobri que o discurso tem implicações reais, com sangue que demarca o chão, o coração e a alma de brasileiros. É liberdade de expressão mentir e desinformar de forma deliberada em assuntos de vida ou morte? É liberdade de expressão difundir o ódio? O senhor também afirmou que a democracia tem como virtude a "autorretificação permanente". "A alternância no poder que se faz periodicamente é o melhor das autorretificações, que é o povo buscar corrigir os seus equívocos, o grande benefício de uma democracia", disse. Mas, senhor Aras, sabemos que nossa história política vive dias decisivos. As próximas semanas definirão quem somos, quem serão eventualmente nossos repressores e seus cúmplices. E eu lhe pergunto: onde estará o senhor se as luzes da democracia forem apagadas? Não haverá como argumentar que fomos pegos de surpresa. E nem que os sinais de alerta não foram dados diante de instituições que estavam supostamente funcionando. Ou será que não estavam? Saudações democráticas, Jamil Chade PUBLICIDADE | | |