Essa newsletter nasceu do projeto de um livro que se chamaria "Vidas Íntimas" e no qual eu pretendia mostrar as vidas extraordinárias de pessoas anônimas.

Como um psicopata vê o mundo dos não psicopatas? Como é a rotina de um homem casado com duas mulheres? O que passa pela cabeça de uma mãe de criança autista? Como são os dias (e as noites) de uma adepta do swing que já fez sexo com mais de cem homens em um ano?

O livro nunca saiu, mas deu origem à série cuja segunda parte vemos hoje (aqui você encontra a primeira parte, e aqui, a segunda). Bob (o nome é fictício), 55 anos, chefe de comissários de uma das maiores companhias aéreas do mundo, conta como é a vida louca dos comissários em terra, fala de sexo no avião e revela uma pista para passageiros que têm medo de voar saberem se o avião está realmente em perigo.

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Durante o voo, nós somos expressamente proibidos de beber. Claro que eu tomo uma tacinha antes de dormir. Mas tem gente que exagera. Outro dia, vieram me avisar: "Bob, a Fulana está caindo no corredor".

E isso foi antes do café da manhã. Nós temos o compartimento da cama do piloto e eu fechei a colega lá dentro, mesmo com ela protestando. Porque se alguém vê aquilo e conta para o comandante, a comissária está despedida no dia seguinte. Escalei um rapaz para ficar com ela na aterrissagem e depois levar pro hotel. Infelizmente, não é uma coisa incomum.

Em compensação, nos pernoites, está tudo liberado e, dependendo da cidade, sempre tem festa. No Rio, os hotéis em que ficamos tem piscina grande, bar... Aí é festa e bebedeira. Em Paris, os hotéis são bons, mas pequenininhos, sem bar. Então, o pessoal da tripulação sai para jantar ou dorme. Já os pilotos chegam no hotel e ligam para as namoradas ou mulheres que já conhecem e pronto.

"Mais que a flexibilidade de horário e a possibilidade de estar em vários lugares, o bom de voar é que você tem uma espécie de carta de alforria."

Mesmo para as mulheres casadas, com filhos, a possibilidade de sair de casa, ficar fora três dias e voltar para os maridos, é uma coisa muito boa. Você tem um refúgio de liberdade. Depois, nós somos muitos, você troca de tripulação todo dia. Não tem aquele colega de trabalho chato que vai te encher o saco todo dia. Não tem horário comercial, não tem a rotina do escritório. Isso eu acho fascinante.

Mas ao mesmo tempo, eu tenho minhas rotinas. Quando estou em Paris, vou sempre ao mesmo restaurante. Em Londres, também tenho meus preferidos. Em Barcelona, sempre trago o meu presunto Pata Negra. Mês que vem eu tenho de ir a Barcelona porque o meu perfume está acabando. E todos nós somos assim.

Eu posso tranquilamente ir para um outro país só para jantar. Nos anos 90, existia em Paris uma boate que eu ia toda segunda feira. Eu saía domingo à noite de onde estivesse, chegava em Paris, me trocava no hotel e ia para lá. Na terça, ia para o aeroporto e pronto. Esse tipo de coisa só a aviação pode te dar

Sexo entre comissários e passageiros tem demais. Recentemente, um comissário meu teve a pachorra de vir me mostrar a mão para provar que o passageiro tinha gozado nela. Mas é mais sexo gay do que hetero. Gay gosta de sexo prático, rápido. Já vi casal heterossexual transando no banheiro? Vi, mas foi uma vez — isso em 28 anos de trabalho. Todas as experiências de que eu me lembro são gays, mesmo porque parece que esses millenials não gostam de sexo.

Eu já me apaixonei por passageiros. Até hoje, ainda sou apaixonado por alguns. Eu tremo quando eles chegam, eles me conhecem pelo nome. São quase todos casados. Um deles, lindo, me adora. Chega e diz: "Hoje estou com o perfume que você gosta". São amores platônicos, claro, eles não rezam na mesma igreja que eu, mas não importa. Quando eu vejo o nome de algum deles na lista, já fico feliz.

Passageiros que têm medo de acidentes costumam prestar muita atenção nos nossos movimentos, nas nossas expressões. Mas somos treinados para disfarçar essas tensões. Então não adianta muito olhar para a nossa cara. Agora, se você observar que todos os comissários estão indo de repente para a parte da frente da aeronave, isso, sim, pode ser sinal de que há algo errado. Porque se tiver uma anormalidade, uma pane grave ou ameaça terrorista, fazemos uma reunião de emergência no cockpit, que é a parte mais defendida do avião.

São muitas as pessoas dentro de um avião, muitas vidas e muitas histórias que você não sabe e nunca vai saber.

Até hoje eu me lembro de um menino negro que estava viajando sozinho e que durante todo o voo não se mexeu, não foi ao banheiro e não quis comer nada a noite inteira. Parecia amedrontado e eu cheguei a pensar: "Será que é tráfico de crianças?". A gente estuda isso no treinamento. Mas o que eu posso fazer? Não estou lá pra resolver esse tipo de problema.

Outro dia, antes de fechar a porta, a supervisora falou: "Ok, Bob, bom voo, você tem 250 almas aí pra cuidar". Eu já estava de mau humor e aquilo me deu uma irritação que você não imagina. Disse pra ela:

"Almas o quê, minha filha, são 250 chatos bem vivos. E que vão me encher o saco à noite inteira".

Francamente, não é sempre que a gente está com vontade de ficar mostrando os dentes pra passageiro.

Uma pesquisa feita com 11 000 usuários de sites de encontros dos Estados Unidos e Reino Unido publicada pela Forbes em 2018 mostrou que 30% das relações sexuais que ocorrem num avião se dão entre pessoas que não se conhecem. Menos frequentes são as relações com parceiros, amigos ou tripulantes. Embora 78% dos entrevistados tenham declarado ter vontade de fazer sexo durante o voo, menos de 5% disseram ter tido a experiência.

As mudanças começaram com o ataque de 11 de setembro de 2001, mas outras ações terroristas afetaram a forma como as pessoas embarcam num avião. A remoção obrigatória de sapatos na passagem pela esteira de raio-x, por exemplo, surgiu depois que, em dezembro daquele mesmo ano, o britânico Richard Reid tentou detonar uma bomba que escondia sob os pés num voo da American Airlines de Paris para Miami.

Já a restrição a líquidos foi estabelecida a partir do incidente de 2006 em que três britânicos —Abdulla Ahmed Ali, Assad Sarwar e Tanvir Hussain— foram presos quando planejavam usar explosivos líquidos em aviões que partiriam de Londres para os Estados Unidos. E os scanners corporais se popularizaram nos aeroportos quando, em 2009, o nigeriano Umar Farouk Abdulmutallab tentou derrubar um avião da Northwest Airlines que ia de Amsterdã para Detroit com explosivos que carregava na cueca.

Embora muitos guardem fresco na memória como era embarcar num avião antes do Onze de Setembro, uma parcela significativa da população — aquela com menos de 21 anos — nunca teve essa experiência. E segundo estimativa da revista eletrônica Quartz, em 2032, a maioria dos passageiros adultos de companhias aéreas americanas não terá a menor ideia de como funcionavam os aeroportos na época em que ninguém precisava tirar os sapatos na fila de raio-x.