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Artigo: Liberdade de expressão tem limites

Alessandro Buzas/Futura Press/Folhapress
Imagem: Alessandro Buzas/Futura Press/Folhapress

Celso Mori, especial para o UOL

01/06/2020 10h44

Muitas pessoas bem intencionadas, que se julgam democratas e defensoras de liberdades fundamentais, têm dificuldade de entender que a liberdade de expressão, um dos fundamentos da democracia, possa ter limites. Uma comparação talvez ajude.

Todos nós, democratas, prezamos a liberdade de ir e vir. Se alguém for impedido de ir e vir, livremente, poderá apresentar um pedido de habeas corpus ao Judiciário. Redigido até de próprio punho e sem advogado, e a sua liberdade de ir e vir será prontamente restaurada.

Você não pode impedir que alguém, usando a liberdade de ir e vir, passeie na calçada da sua casa.

Mas, se alguém, que você nem conhece ou convidou, resolver entrar na sua casa, ir até à geladeira, pegar uma cerveja, vir até à sala e se sentar na frente da televisão, você certamente chamará a polícia. E, se o policial se recusar a atendê-lo sob a alegação de que o invasor está exercendo a liberdade de ir e vir, você ficará justamente estarrecido e tomará providências mais drásticas.

Da mesma forma todos nós podemos expressar livremente as nossas ideias e exercer o direito de crítica às ideias e atitudes de outros. Mas, isso tem um limite, que é a dignidade da pessoa humana. Não vou explicar aqui o que é a dignidade da pessoa humana, porque imagino que todo mundo que esteja lendo este texto tenha dignidade e saiba de que se trata. Além disso, tanto quanto a liberdade de expressão, a dignidade da pessoa humana é um valor constitucional.

Pois bem. Ninguém pode ser impedido previamente de se expressar. Isso seria censura prévia, que não cabe nas democracias, como não cabe impedir alguém de se locomover na suposição de que possa invadir a casa de outrem.

Mas, se alguém, ao conduzir a própria liberdade de expressão, invadir a sua intimidade, e atacar a sua dignidade injustamente, você pode processa-lo, com fundamento na Constituição e no Código Penal, por calúnia, ou por injúria, ou por difamação. Ou pelas três violações, conforme seja o caso. Essa reação não constituirá cerceamento da liberdade de expressão do ofensor, da mesma forma que expulsar alguém da sua casa não é violação da liberdade de ir e vir do invasor.

Na vida da selva, todas as liberdades são absolutas. É a isso que se chama de vida selvagem. Na vida civil, as liberdades e a dignidade da pessoa humana precisam se acomodar racionalmente. É a isso que chamamos de vida civilizada.

O Supremo Tribunal Federal, em um lamentável e antigo voto de ministros que hoje pensam de forma diferente, no passado já decidiu que quem vai para a vida pública tem que estar preparado para ser ofendido, ainda que injustamente, em garantia da liberdade de expressão do ofensor.

Essa decisão viola a Constituição, que pressupõe a ponderação e a razoabilidade entre os valores que expressamente protege. E, sobretudo, é uma decisão que corrói a democracia.

Se aceitarmos que só aqueles que não prezem e não defendam a sua honra, que só aqueles que aceitem ouvir injúrias, difamação e calúnia sem reagir possam ir para a vida pública, estaremos decretando que a vida pública é o espaço dos sem vergonha. E a isso nenhuma democracia resiste.

Liberdade de expressão, sim. Censura prévia, nunca. Mas, a sociedade civilizada exige que cada um responda pelos seus próprios atos e pelas ideias que expressa. Liberdade com responsabilidade é a diferença entre a vida selvagem e a vida civilizada.

Celso Mori é sócio do Pinheiro Neto Advogados