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OPINIÃO

Interesses de políticos não podem determinar destino de comissões

Presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, conversam em Brasília - Ueslei Marcelino/Reuters
Presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, conversam em Brasília Imagem: Ueslei Marcelino/Reuters

14/04/2023 11h16

Pedro Kelson*

Nas últimas semanas foi noticiado que os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), e da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP/PI), tiveram embates sobre a PEC das Comissões Mistas. De um lado, Lira defendeu o fim dessa etapa de apreciação de Medidas Provisórias. De outro, Pacheco exigiu a volta dos ritos legislativos, garantidos pela Constituição e suspensos durante o período de emergência da pandemia da Covid-19. Depois, a disputa foi pela composição das comissões, com Lira demandando o triplo de membros da Câmara e Pacheco defendendo a paridade. Ao que tudo indica, chegaram a um acordo: estão sendo instaladas três Comissões Mistas para apreciar as MP´s prioritárias, com o mesmo número de parlamentares de cada Casa. Na queda de braço do Congresso, o senador mineiro, a princípio, levou a melhor.

Eliminar as comissões daria controle de agenda ao presidente da Câmara. No entanto, essa não é apenas uma disputa de poder e não deveria ser tratada como tal. Essa é uma disputa com impactos diretos na qualidade de nossa democracia. As comissões mistas são espaços de ampliação do debate público sobre temas relevantes ao país, com alguma porosidade à participação, não apenas de parlamentares, mas também de acadêmicos e de organizações sociais. Acabar com as comissões, além de inconstitucional, atenta contra o aprimoramento da produção legislativa brasileira e contra a própria ideia de democracia participativa.

O capítulo da PEC das Comissões Mistas foi apenas mais um passo dado na consistente caminhada do Congresso Nacional, com destaque para a Câmara dos Deputados, para reduzir os espaços de participação social no processo político. Ao longo da última legislatura foram realizadas reiteradas reformas de regimento para, em tese, acelerar o rito legislativo, mas que na prática inviabilizam o debate público amplo e plural. Em nome da celeridade, parcialmente justificada na emergência pandêmica ao longo dos últimos anos e totalmente injustificada no atual momento, Arthur Lira extinguiu comissões temáticas e adotou o modelo de grupos de trabalho (GTs) para elaboração de projetos.

Os GTs se mostraram espaços herméticos à participação e o debate social. Para exemplificar o tamanho do problema, o maior projeto de reforma político-eleitoral dos últimos 30 anos (PL 112/21) foi criado em um grupo de trabalho a mando de Lira em meados de 2021. Após meses de elaboração em uma sala fechada, sem que ninguém pudesse ter acesso ao conteúdo do texto, a sociedade brasileira foi surpreendida com um projeto com mais de 900 artigos já no momento de votação no plenário da Casa. O projeto, que agora avança no Senado, traz retrocessos graves em temas como representatividade política, fiscalização e controle de partidos e campanhas e transparência de dados. Não fosse a ação rápida e assertiva da sociedade civil organizada, que impediu o avanço do projeto em tempo de valer para as eleições de 2022, Lira teria reformado profundamente o nosso sistema eleitoral, político e partidário conforme os seus interesses únicos e exclusivos, sem debate, sem análise e sem democracia, e a mudança valeria para as já conturbadas eleições de 2022.

Além disso, Lira retirou das minorias os mecanismos de obstrução, fechou o seu gabinete para receber representantes da sociedade civil -que vinham pleitear demandas absolutamente legítimas, como a defesa da democracia e dos direitos humanos- e atropelou muitas vezes o regimento interno quando de interesse próprio. Até a disposição arquitetônica da Casa foi alterada para afastar a imprensa do Salão Verde, típico espaço de encontro entre parlamentares e jornalistas, onde muita informação de interesse público é colhida. Lira asfixiou assim o debate público, reduziu a pluralidade de vozes e eliminou o necessário tempo de maturação das ideias. Em nome da celeridade, enfraqueceu o processo democrático, o que lhe legou a alcunha de "Trator Lira".

Essa postura do presidente da Câmara estava em sintonia com o projeto político vigente no país nos últimos quatro anos. Participação social, diversidade e fortalecimento dos processos democráticos nunca foram agendas do governo Jair Bolsonaro, então aliado de Lira. Muito pelo contrário. Vivemos uma temporada de terra arrasada nessa área, com a extinção de praticamente todos os colegiados de participação social existentes e o aparelhamento daqueles que restaram por determinação constitucional.

Alguma esperança talvez resida na capacidade que Lira possa ter de se moldar ao poder vigente. Se não por uma questão de princípios democráticos, que seja ao menos por interesse próprio. O novo governo sinaliza para a reabertura de espaços de diálogo com a sociedade civil com a recriação dos conselhos participativos e a abertura do Poder Executivo Federal para receber entidades e dialogar sobre os temas relevantes à vida pública. Que o novo Congresso Nacional também seja capaz de priorizar o bom debate, a ampla participação social, a pluralidade de visões de mundo e o amadurecimento legislativo à concentração personalista de poder, pois disso depende a qualidade da nossa democracia. Que a atenção dada a essa disputa de poder a partir do rito legislativo não se esvazie após a acomodação dos interesses, pois o que é realmente importante está escondido atrás dela.

*Pedro Kelson é mestre em cultura política e capital social (PUC-SP) e coordenador de articulação do Pacto pela Democracia