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OPINIÃO

A quarta dimensão

Taxa de desistência no ensino superior chega a quase 60% Imagem: Chinnapong/Getty Images/iStockphoto

Luiz Roberto Liza Curi*

15/10/2024 18h05

Charles Howard Hinton, um matemático Inglês de meados do século XIX, acabou fugindo para a literatura com o intuito de expor em romances científicos suas ideias acerca da quarta dimensão do universo, de pouca credibilidade na ciência da época.

No seu enigmático conto o Rei da Pérsia, publicado em seu livro Relatos Científicos, não fica claro se ele está de fato demonstrando suas percepções teóricas de olho na realidade ou percorrendo o fantástico de sua imaginação de olho na conjuntura. Mas vale a leitura.

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Nem sempre o abrigo da realidade aos fatos materiais é capaz de se associar à conjuntura que a precede. Nesses casos, ficamos sem saber se a insistência em conservá-los em conjunturas adversas não reproduzem apenas ilusões ou fantasias.

Talvez o Censo da Educação Superior, anunciado recentemente, possa dar algum cabimento a essa reflexão. Ao percorrermos as diversas dimensões lá contidas, iremos verificar basicamente os mesmos indicadores desde 2014, na tendência e no modelo de expansão da educação superior brasileira. Ou seja, uma realidade educacional que à revelia das transformações conjunturais dos ultimo dez ou vinte anos, é a mesma.

A taxa de desistência estudantil dos cursos superiores, acumulada em 2023, segue surpreendendo continuamente a nação como uma duradoura crise metabólica que alcança, há anos, índices de 59% em geral, sendo 53% nas públicas, 61% nas particulares e 66% na EAD (Educação a Distância). Perdas irreparáveis para qualquer regime que se queira adotar. Estudantes cotistas evadem menos e concluem o curso mais rápido.

Como paroxismos arteriais, o número de novas vagas oferecidas pelas instituições de educação superior continua hediondo e desencontrado ostensivamente da demanda e das razões de desenvolvimento do país. Foram oferecidas 24,7 milhões de vagas em 2023, que geraram ingressos de 4,9 milhões de pessoas, mantendo uma ociosidade de vagas de 80%, índice resistente a tratamentos. As instituições particulares ficaram com 4,4 milhões de matrículas e as publicas com 570 mil.

O crescente fértil da expansão na EAD continua representando 66% do total de novas matrículas, ou cerca de 3,3 milhões. A EAD alcançou mais de 4,9 milhões de matrículas num total de 9,9 milhões. Mesmo com essa expansão, continuamos com a metade de diplomados em cursos superiores do que a média dos países da OCDE. Uma patologia resistente a antibióticos. Com efeito, nessa última década ficamos encalhados entre 19% e 21% de jovens de 18 a 24 anos que ingressaram na educação superior.

Esse movimento também serve como barreira à inclusão à formação superior. Apenas 21% dos egressos do ensino médio público ingressaram na educação superior, contra 59% dos egressos do ensino médio particular. A ampliação das cotas e as ações de permanência de estudantes no ensino médio, como o Pé-de-Meia, são esforços do Ministro da Educação, em cooperação com o CNE (Conselho Nacional de Educação) e universidades públicas e se constituem na esperança de ingresso dos jovens de baixa renda, pretos, pardos e com deficiência na continuidade dos estudos.

Como nos ensina o instigante conto a Loteria da Babilônia, do escritor Argentino Jorge Luis Borges, a ausência de ganhos pode causar pesadas perdas. É o caso da regulação da educação superior. Para além de propor uma tutela normativa com baixo teor de significado às instituições de educação superior, a regulação orienta o processo de avaliação. Esse acaba por seguir padrões e desenvolver indicadores estritamente baseados na avaliação da norma e não do desempenho ou de qualquer tipo de impacto cabível a cursos superiores e instituições.

Os próprios indicadores do censo, preparado pelo mesmo instituto que faz a avaliação, poderia dar uma série de sugestões aos instrumentos de avaliação externa e regulatória da educação superior. É o caso, por exemplo, dos indicadores docentes.

O Censo da Educação Superior de 2023, demonstra que há um numero maior de professores, ou 177,6 mil, em instituições públicas, que detém cerca de 20% das matrículas nacionais, do que nas particulares, com 150,4 mil docentes, responsáveis pelos 80% das matrículas do sistema. São 316 instituições de educação superior públicas, contra 2.580 particulares.

O censo ainda nos informa que uma única instituição ofertante majoritariamente de educação a distância possui 709,7 mil estudantes para 326 professores. Esse seria um grande tema para a avaliação construir indicadores diversos e dimensões a serem avaliadas com o intuito de estimular não só o numero de professores, mas principalmente seu papel na construção de aprendizado sob currículos inovadores, baseados em competências, interdisciplinares, relacionados e integrados com práticas e com ambientes profissionais, a pesquisa e a extensão.

Nesse caso, a avaliação estimularia perspectivas de políticas institucionais curriculares associadas às de desenvolvimento docente nas instituições. Todas iriam responder adequadamente e a sociedade sairia ganhando. Em vez disso, os indicadores, quase sempre quantitativos, se incumbem de levantar número de docentes, tempo de dedicação, aderência à disciplina, abstraindo a interdisciplinaridade e a titulação. Poderia ter essas, mas sem deixar aquelas.

Outra dimensão relevante indicada no censo se refere aos concluintes. Nesse caso, foram 1,37 milhão de concluintes em 2023, frente a cerca de 10 milhões de matrículas. A avaliação poderia estimular as instituições a analisar o impacto dos egressos frente ao emprego, as razões de fracasso, a associação entre currículos e ausência de ocupação de postos básicos ou relacionados à inovação e às áreas estratégicas de desenvolvimento produtivo de serviços e políticas públicas. Em 2023, o saldo de postos para trabalhadores com ensino superior caiu em 74,2% em relação a 2022 — de 4.214 para 1.087.

O conjunto dessas questões alcança a economia e coloca em xeque o ecossistema de inovação, compromete o desenvolvimento de políticas publicas, desfavorece o combate à desigualdade, o acesso à renda e ao emprego e ainda ameaça de funesto o futuro do país. De acordo com dados divulgados em 2024 pelo Geofusion**, cursos como Direito, Administração e Pedagogia, campeões em matrículas, conseguiram empregar apenas 12% de seus egressos. Nas Engenharias, dados da Abenge (Associação Brasileira de Educação em Engenharia) indicam em 2022 uma dispersão do diploma próxima a 60%.

O censo demonstra que a expansão e o desenvolvimento da educação superior é uma roda que gira em falso há tempos. Esse ortogonal desvio da realidade é alimentado, como vimos, por um processo regulatório e avaliativo que insiste, ao longo dos anos, em não se alterar. As normas e regras regulatórias vigentes, rasas e básicas, deixaram de focar o desempenho, o impacto e sua associação às demandas nacionais pela pesquisa, pelo conhecimento e formação. As boas realizações dependem mais de iniciativas de universidades de pesquisa, de grupos de professores, cientistas e pesquisadores que mantêm uma certa inovação curricular e insistem em uma agenda de relevância à sociedade.

Continuamos formando poucas pessoas e formamos mal, se o indicador geral for o emprego. Mantivemos uma baixa taxa de ingressantes e uma alta evasão. O ingresso ainda é restrito, especialmente aos de mais baixa renda. Claro está que estamos reproduzindo realidades apartadas da conjuntura. O resultado da atual regulação, o censo nos indica, é uma reprodução assexuada de matrículas desordenadas de regiões, áreas ou sentidos.

Felizmente tanto o Ministro da Educação, quanto os dirigentes das áreas regulatórias e avaliativas, Seres (Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior) e Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), vêm reordenando a regulação e a avaliação, buscando um sentido nacional para a expansão da educação superior.

A conjuntura deve expressar a materialidade transformadora do conhecimento, da formação da ciência e da cultura. No caso da Educação, a quarta dimensão não pode superar o espaço-tempo da mortalidade.

* Luiz Roberto Liza Curi é Sociólogo e Doutor em Economia pela Unicamp, foi presidente do Conselho Nacional de Educação, é titular da Cátedra Paschoal Senise da Usp e pesquisador associado da FGV.

** Um levantamento feito pela agência Geofusion — a partir do cruzamento de dados do sistema de registro profissional do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) com Censo do Ensino Superior 2022 do Ministério da Educação (MEC) — revela que, de cada 10 egressos do ensino superior dos 10 maiores cursos de graduação do Brasil, apenas um consegue emprego com carteira assinada compatível com o seu nível de formação.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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