OPINIÃO
A esquerda depois da derrota
Renato Janine Ribeiro*
Colunista convidado
28/10/2024 13h37
É inegável que o governo e a esquerda sofreram nesta eleição uma derrota clara, se não esmagadora. É verdade que também o bolsonarismo impuro e duro se saiu mal. A eleição mostrou um Brasil dividido em três grupos, por ordem de importância:
1. Uma direita conservadora, quase extrema, que está se afastando de Bolsonaro e foi a grande vencedora das eleições. Não chega a ser bolsonarista, mas tampouco é a direita democrática, que foi a do PSDB quando este largou as bandeiras progressistas e migrou para a direita. Está perto do "bolsonarismo moderado", para usar uma expressão que vi nas redes sociais —como se fosse possível humanizar o ódio!
Relacionadas
2. A extrema direita bolsonarista marcou posição, mas terminou em um distante segundo lugar.
3. A esquerda, particularmente vinculada ao governo petista, mostrou um desempenho sofrível, tanto em número de municípios conquistados quanto em votos obtidos.
O crucial é entender a lição dessa derrota para o governo e o setor progressista. O problema não é só de comunicação, mas de conteúdo. Não é apenas a forma como a mensagem é transmitida, mas o que está sendo oferecido.
O esgotamento do modelo de inclusão via consumo
É curioso que ninguém mais fale na "inclusão social pelo consumo", tema constante dos governos Lula 1 e 2: foi uma estratégia eficaz, que tirou milhões da pobreza e da fome, dando-lhes dignidade. (O que faltou então foi uma educação política, que junto com os bens de consumo também trouxesse elementos de pensamento, para se entender como funcionam as políticas sociais).
Esse processo foi revertido pelos governos Temer e Bolsonaro, e ainda não foi totalmente recuperado. Mas, de todo modo, esse modelo já não basta para as novas demandas da população. Ele é necessário, mas não suficiente.
A pauta do empreendedorismo conquistou espaço, mesmo sendo frequentemente criticada pela esquerda como ilusória.
Cheguei a ler ataques agressivos de pessoas de esquerda, especialmente ao chamar trabalhadores que acreditam no empreendedorismo, como motoristas de aplicativos, de "pobres de direita". Esse tipo de linguagem não ajuda nada e mostra uma incompreensão do que atrai esses trabalhadores.
Sim, o empreendedorismo pode espalhar uma cultura individualista, mas o que o torna popular é que, para muitos, ele representa liberdade: a possibilidade de escolher os horários e trabalhar sem um chefe em cima de você. Esses elementos contrastam com a rigidez da CLT, que muitos não desejam.
A questão do empreendedorismo e as eleições
Vamos desfazer o mito, frequente na classe média progressista, de que os mais pobres são enganados pela direita. As pesquisas mostram que o voto na (extrema) direita vem mais das camadas mais altas da sociedade do que dos pobres.
Mas voltemos à atratividade do empreendedorismo. Na segunda fase das eleições, Guilherme Boulos (PSOL) captou a importância do tema e fez propostas que acho boas. Mas elas não ressoaram entre os motoristas de aplicativos com quem falei. Por exemplo, consideraram irrelevante a ideia de criar pontos para carregar celulares, já que a maioria recarrega o aparelho no próprio carro.
A sugestão de espaços para descanso e alimentação tampouco teve grande impacto, pois eles já utilizam padarias e outros estabelecimentos.
Talvez uma alternativa mais eficaz fosse investir em capacitação e treinamento para que esses trabalhadores possam melhorar sua atuação como autônomos, reforçando seu desejo de independência.
O descontentamento com o governo e os desafios futuros
O descontentamento com o governo federal é evidente, e não há respostas simples para resolver essa questão. No campo progressista, há duas propostas em debate:
1. Radicalizar à esquerda, partindo da premissa de que a falta de radicalismo foi o motivo da perda de apoio popular.
2. Aproximar-se mais do centro, repetindo a estratégia que garantiu a vitória de Lula em 2022, quando votos centristas foram decisivos.
Essas propostas são conflitantes. Mas o problema de quem defende qualquer uma delas é imaginá-la válida em toda circunstância —quando, na política, tudo depende da conjuntura. A ida para o centro foi essencial em 2022 para derrotar Bolsonaro. Agora, qual rumo seria prioritário?
Ainda uma palavra: a democracia venceu em 2022 porque fez uma frente ampla. Nesta eleição, vi duas frentes amplas, uma capitaneada pelo centro (Eduardo Paes, mais ou menos retomando os aliados de Lula 2022) e outra pela direita (Tarcísio de Freitas mais Ricardo Nunes). Qual dessas alianças se habilita para 2022?
Reflexão sobre a campanha de Boulos
Guilherme Boulos cresceu durante a campanha e teve um desempenho melhor no final, mas isso não foi suficiente. Ele obteve o mesmo percentual de votos de quatro anos atrás, quando enfrentou Bruno Covas. Desta vez, competiu contra um adversário mais fraco, mas ainda assim não conseguiu vencer.
Repetir a mesma estratégia pode não ser a solução. Não se trata de dizer que o nome de Boulos é ruim, mas há uma sensação de repetição, e será necessário buscar algo novo para as próximas disputas. Porém, mais do que nomes, é preciso definir políticas. O que dizer ao eleitor? Musiquinhas ainda adiantam? Ou seria melhor saber o que o cidadão deseja e falar com ele ele?
*Ex-ministro da Educação e professor de Ética e Filosofia Política na USP
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL