Na favela da Rocinha, boca de urna é "lei"
Gustavo Maia
Do UOL, no Rio
Apesar de ser crime previsto na legislação eleitoral, fazer propaganda de candidatos no dia da eleição é uma prática historicamente comum na favela da Rocinha, em São Conrado, na zona sul do Rio de Janeiro. "Boca de urna aqui é lei", diz a diarista Ana Carolina Rocha, 35, que leva na mão santinhos e panfletos amassados. "O povo sabe que é errado, mas tudo o que é proibido, aí é que fazem mesmo", completa.
A reportagem do UOL percorreu trechos da comunidade no início da tarde deste domingo (2) e presenciou dezenas de pessoas entregando material de campanha de candidatos de diversos partidos, alguns deles empunhando bandeiras. No chão, os papéis com fotos e números dos políticos se acumulavam e eram levados pelo vento.
E tudo isso sem fiscalização aparente. Em mais de uma hora no local, a reportagem não encontrou nenhum funcionário do TRE-RJ (Tribunal Regional Eleitoral do Rio). Por telefone, a assessoria de imprensa do órgão informou que, até as 14h30, não tinha informações sobre fiscalização na Rocinha.
Morador da comunidade, o candidato a vereador Adelson Guedes (PTB) continuava a pedir votos neste domingo. Vestido com um chapéu de cangaceiro e com adesivos que estampavam o próprio rosto colados na roupa, disse que sua campanha não tinha dinheiro e era baseada apenas no "boca a boca". "Só entrego santinho para quem pede", contou.
Para o candidato, o fim das cenas de santinhos acumulados no chão em dias de eleição passa "por uma mudança de cultura do brasileiro". Sobre o fato de a prática estar proibida hoje, declarou que "a Justiça aqui nesse país é uma aberração".
"Para você ver: o TRE determinou que não haveria boca de urna. Tem boca de urna. Se não tem como segurar a 'banana', libera essa porra. Não é justo", declarou. Segundo ele, fiscalização até tem, "mas é capenga, como se não existisse. Aqui vale tudo."
Na passarela que leva a um dos acessos à favela, uma das principais e mais populosas da cidade, com mais de 70 mil moradores, o radialista Ricardo Franklin, 43, não fazia questão de disfarçar a prática.
"Quem ama sua família, vota 10, vota Crivella", repetia, distribuindo santinhos do vereador e candidato à reeleição Dr. Carlos Eduardo (SD), cujo partido não integra a coligação do candidato a prefeito Marcelo Crivella (PRB). "Quando fala nele, todo mundo pega", disse, entre risos.
A reportagem questionou Franklin como ele descrevia sua atuação neste domingo. "É boca de urna", disse o radialista, sem hesitar. "Se chegar algum fiscal aqui eu saio fora."
"Quero ver conseguirem prender todo mundo", comentou Gelson Silva, 65, que mora na Rocinha. "Toda comunidade é assim. Não tem como controlar tanta gente", disse.
Dois jovens entregavam panfletos do candidato à Prefeitura do Rio Pedro Paulo (PMDB) e ofereceram um a reportagem. Questionados se sabiam que a prática configurava crime, disseram ser voluntários e menores de idade. "Se prenderem um, vão ter que prender todo mundo", disse um deles.
Sob anonimato, alguns cabos eleitorais relataram ter recebido de R$ 20 a R$ 50 pelo serviço no dia de eleição. "Sei que é errado, mas a gente tem que pagar aluguel", explicou-se um homem, morador da comunidade.
No Rio a passeio com um grupo de amigos, a turista australiana Karina Mackie fazia uma visita guiada à favela neste domingo. A entrega de panfletos no dia da eleição não lhe pareceu estranha, mas o lixo acumulado no chão impressionou.
"Na Austrália só é permitido entregar material com o número do candidato no dia da eleição, nos locais de votação, mas temos grandes recipientes de lixo reciclável para jogar os panfletos fora", disse.
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