Crivella governará um Rio ainda partido pela desigualdade
Bernardo Barbosa
Do UOL, em São Paulo
-
Alicia Nijdam - 21.mar.2008/Wikimedia Commons
São Conrado e Rocinha, separadas pela autoestrada Lagoa-Barra
Para entender o quão flagrante é a desigualdade no Rio de Janeiro, basta atravessar a rua. De um lado da autoestrada Lagoa-Barra, quem nasce no luxuoso bairro de São Conrado, na zona sul, tem expectativa de viver até os 82 anos. Do outro lado da via, o morador da parte mais baixa da favela da Rocinha vem ao mundo com uma esperança de vida dez anos menor.
Este é apenas um entre dezenas de indicadores que compõem o IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal), uma referência para entender o tamanho dos abismos sociais que marcam a vida, a paisagem e a história do Rio --e que desafiarão a gestão do prefeito eleito da cidade, Marcelo Crivella (PRB).
Em uma escala de 0 a 1, o IDHM da região de São Conrado que fica entre a favela e o shopping Fashion Mall é 0,959, considerado muito alto. Já o da parte vizinha da Rocinha é 0,663 (médio).
"Quando um lugar tem IDHM alto, as pessoas têm mais opções. Em um lugar com IDHM baixo, as pessoas não têm muito para onde correr, não têm muito como mudar a história", diz Andréa Bolzon, do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). "É um índice que torna evidentes as desigualdades entre territórios."
O IDHM foi criado pelo Pnud, Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e Fundação João Pinheiro com base em dados do censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Assim como o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), elaborado pela ONU e voltado para a comparação de países, o IDHM tem como dimensões saúde, educação e renda. No entanto, o índice municipal mede estes temas com indicadores diferentes dos utilizados no cálculo do IDH --o que inviabiliza a comparação entre uma região do Rio e um país, por exemplo.
Metas e participação popular
Questionado pelo UOL, Crivella disse em nota apenas que pretende melhorar "todos os indicadores sociais e urbanos" com investimentos em educação, saúde, saneamento, emprego e segurança, sem especificar propostas concretas. Segundo o prefeito eleito, "as metas de melhorias dos indicadores sociais e urbanos serão definidas em função das prioridades das regiões a serem atendidas e da análise orçamentária".
O coordenador executivo da Casa Fluminense (ONG voltada a fomentar ações para promoção de igualdade na cidade), Henrique Silveira, defende a importância de priorizar o investimento nas áreas com piores indicadores. Para isso, segundo ele, tanto a criação de metas como o estímulo à participação popular são medidas importantes.
"A gente precisa reforçar a importância de o prefeito entregar seu plano de metas em 120 dias, como diz a Lei Orgânica do município. A gente precisa de transparência em todos os níveis de governo, empoderar a população para participar da elaboração das políticas públicas."
Tão perto, tão longe
O designer Denis Neves, 30, morador da Rocinha desde que nasceu, considera a desigualdade entre seu bairro e São Conrado "clara, gritante". Ele diz que tenta combater também a naturalização de tal panorama.
"São tantas coisas ruins acontecendo ao mesmo tempo que a gente passa a achar natural. Claro, é um erro. Eu me policio para não me acostumar e fazer o meu bairro melhor, melhorar a vida das pessoas à minha volta com as ferramentas que a gente tem, que são limitadas", afirma.
Já o advogado Frederico Souza, 27 anos, morador de São Conrado desde os 7, diz que perceber uma desigualdade tão nítida em um "local mínimo" provoca desconforto.
"Você sabe que no bairro em que você mora existem pessoas milionárias, como tem em São Conrado, todo mundo sabe, e pessoas com condição financeira extremamente precária", diz. "A gente sabe que muita coisa na favela não tem, como bens básicos."
De frente apenas para o mar
O contraste entre São Conrado e Rocinha fica evidente pelos indicadores sociais e pela proximidade geográfica, mas são apenas parte de um padrão de desigualdade que se reproduz por toda a capital fluminense.
A região de São Conrado mais próxima à Rocinha e outras três da zona sul têm o maior IDHM da cidade. Na outra ponta, com índice de 0,604, estão 11 localidades da zona oeste, como a Vila Porta do Céu, em Bangu.
O diretor do FGV Social, Marcelo Neri, diz que o Rio tinha baixa penetração de programas sociais, como o Bolsa Família, até 2010. "De 2011 em diante, o Rio teve uma grande redução de pobreza, mas nem tanto de desigualdade", diz, com base em dados da Pnad (Pesquisas Nacionais de Amostra por Domicílio), realizada anualmente pelo IBGE.
Henrique Silveira, da Casa Fluminense, afirma que há uma concentração de investimentos na faixa litorânea do Rio. Segundo ele, isso é "consequência de uma visão estreita" da cidade que está na gênese da desigualdade carioca.
"O impacto geral da desigualdade é a permanência da cidade partida. Alguns têm direitos, outros não, e a gente se acostuma com isso."
De costas para a favela
Também com base em números do IBGE, o Observatório de Metrópoles do INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) criou o IBEU (Índice de Bem-Estar Urbano), que observa indicadores de mobilidade e habitação, entre outros. Neste caso, a cidade foi dividida em 200 territórios, seguindo a delimitação feita para o censo de 2010.
A escala do IBEU também vai de 0 a 1. A região com o menor índice de bem-estar é a de Rio das Pedras 1, com 0,460, dentro da favela de mesmo nome na zona oeste carioca. Já a área com o maior índice é Copacabana 3, entre as ruas Almirante Gonçalves e Santa Clara, com 0,965.
O coordenador do Observatório das Metrópoles, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, diz que o IDH captura, por exemplo, o aumento da longevidade decorrente da urbanização e do acesso à saúde básica. "Estamos vivendo mais, mas com que qualidade de vida?", questiona.
Segundo Ribeiro, há hoje uma disputa entre fazer uma cidade para o bem-estar e uma cidade voltada para o desenvolvimento econômico. "Os megaeventos alavancaram investimento, mas em detrimento de prover à população esse tipo de bem-estar", afirma.
Henrique Silveira lembra que 20% dos cariocas ainda vivem em favelas, segundo ele o "reflexo mais visível da desigualdade na cidade".
"Isso até saiu do debate público. O programa Morar Carioca [da prefeitura], que tinha como objetivo urbanizar as favelas até 2020, ficou pelo caminho. Uma política para redução de desigualdade precisa retomar como urbanizar e integrar as favelas. Isso precisa ser uma prioridade", diz.
Em nota, a Secretaria Municipal de Habitação e Cidadania disse que, de 2010 a junho de 2016, o Morar Carioca "levou seus benefícios a cerca de 500 mil moradores de 122 mil domicílios de 226 comunidades e loteamentos de toda a cidade." No seu lançamento, há seis anos, o programa estava orçado em R$ 8,5 bilhões, com o objetivo de urbanizar todas as 763 favelas do Rio.
Somos desiguais porque talvez não nos importemos muito com a desigualdade como cidadãos, como eleitores
Marcelo Neri
Os desafios do prefeito eleito
Andréa Bolzon, do Pnud, diz que é possível pensar em metas para melhorar o desenvolvimento humano de uma região com base em políticas ligadas à melhora dos indicadores que compõem o IDHM. "A expectativa de vida está relacionada a mortalidade infantil, homicídio, acidentes de trânsito. Políticas que melhorem essas condições terão incidência sobre a expectativa de vida ao nascer", explica.
Para Marcelo Neri, do FGV Social, a prefeitura é o nível de governo mais próximo do cidadão e, por isso, deveria ser a mais habilitada a perceber suas necessidades. Segundo ele, é preciso investir nas favelas e na educação desde as creches e pré-escolas. "A educação é o principal determinante das várias desigualdades", diz.
Henrique Silveira, da Casa Fluminense, afirma que o prefeito precisa priorizar o investimento nas áreas mais carentes de infraestrutura, serviços e direitos básicos. "A resposta é bem óbvia, mas a realidade mostra que essa receita não está sendo seguida há algumas décadas", afirma.
Já para Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, do Observatório das Metrópoles, o grande desafio é reduzir a desigualdade urbana. Segundo ele, em um momento de crise econômica, os municípios ficam mais suscetíveis às PPPs (parcerias público-privadas), que nem sempre são voltadas para o bem-estar da população em geral.
"Vai haver uma pressão do mercado e do próprio sistema político em usar isso para financiar obras públicas, quando a função municipal tem mais a ver com custeio: manter saúde, escola, lixo, saneamento. Custeio é um investimento social. Isso tem uma repercussão no desenvolvimento humano."
Na opinião de Frederico Souza, é difícil que um prefeito consiga alterar o panorama de desigualdade, mas pode fazer investimentos para que esse processo comece.
"Acho que precisam ser tomadas diversas medidas para a saúde, educação e emprego, que é o caminho para que se possa começar a reduzir essa desigualdade."
Já Denis Neves espera que os serviços públicos cheguem à Rocinha para valer. Segundo ele, a prioridade absoluta para os moradores é a implantação de um sistema de saneamento básico e mais atenção à saúde --a Rocinha tem áreas com altos índices de tuberculose, doença praticamente inexistente em áreas mais ricas da cidade.
"Cuidar do povo não tem a ver com um governo de esquerda, direita ou de centro, é uma prioridade."
Análise: Com Crivella eleito, a grande vitória é da Igreja Universal
Veja também
- Crivella assume Rio com menos recursos e mais dívidas a pagar
- Com 'chora capeta', Silas Malafaia comemora eleição de Crivella
-
- 10 GIFs resumem com humor as reações após Crivella ser eleito no Rio
- Soma de brancos, nulos e abstenções supera votos em Crivella no Rio
- Imprensa estrangeira destaca vitória de Crivella e guinada conservadora no país
- Eleitores de Freixo encaram derrota com festa e cerveja no centro do Rio