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Megabloqueio e sistema fora do ar levam confusão ao Bolsa Família

Devanir Moraes, de São Paulo, teve o Bolsa Família bloqueado em março por suposta falta dos filhos na escola; na foto, ela mostra que a frequência foi de quase 100% - Amanda Rossi/UOL
Devanir Moraes, de São Paulo, teve o Bolsa Família bloqueado em março por suposta falta dos filhos na escola; na foto, ela mostra que a frequência foi de quase 100% Imagem: Amanda Rossi/UOL

Do UOL, em São Paulo

18/04/2023 04h00

O governo Lula realizou um megabloqueio do Bolsa Família entre março e abril, atingindo mais de 1,2 milhão de famílias — o número exato não é conhecido porque o governo se recusa a informar. Falhas na operação estão gerando confusão nos municípios: sistema fora do ar, falta de orientação do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e benefícios bloqueados mesmo sem irregularidades.

O que aconteceu

Em abril, o MDS bloqueou 1,2 milhão de benefícios do Bolsa Família de pessoas que dizem viver sozinhas. Isso equivale a um de cada vinte beneficiários.

Em março, também houve um grande bloqueio para averiguação de frequência escolar. Questionado pelo UOL desde 4 de abril, o ministério tem se recusado a informar o número de famílias afetadas.

O ministério orienta quem foi bloqueado a procurar postos do Bolsa Família nos municípios. Mas o sistema operacional que faz a gestão dos benefícios ficou fora do ar na maior parte do mês em muitas cidades. A demanda também é maior que a capacidade de atendimento.

O resultado são pessoas revoltadas e equipes sobrecarregadas.

O UOL encontrou filas de beneficiários bloqueados pelo Bolsa Família em unidades do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) na periferia de São Paulo. É no Cras que devem ser feitas as regularizações de cadastro para solicitar o desbloqueio.

Bloquearam o Bolsa Família por falta. Mas os meus filhos nunca faltam. Fomos até as escolas para saber o que aconteceu. A frequência deles é de quase 100%. E bloquearam mesmo assim. Estou com os documentos das escolas aqui".
Devanir Moraes, mãe de três filhos, que teve o Bolsa Família bloqueado em março

Eu moro sozinho há dois anos. Sou só eu e Deus. Eu alugo o andar debaixo. No andar de cima, vive a dona da casa. Eu era motorista, mas não posso mais trabalhar por problema de saúde. E ainda não consegui aposentar".
Carlos Lourenço da Silva, 62 anos, teve o Bolsa Família bloqueado em março

Equipes do Bolsa Família criticam ministério

Os problemas são tantos que equipes responsáveis pelo Bolsa Família nos municípios postaram críticas públicas nas redes sociais do MDS. A pasta chegou a apagar um dos posts que tinha muitos comentários negativos.

O UOL ouviu relatos de problemas em quatro estados: Rio Grande do Norte, Ceará, Minas Gerais e São Paulo.

A principal queixa é que, enquanto o MDS informa nas redes sociais que o desbloqueio do Bolsa Família é feito pelos municípios, ao mesmo tempo envia mensagens internas para as equipes dizendo que o sistema que faz o desbloqueio está fora do ar.

O ministério também diz que os beneficiários bloqueados precisam assinar um termo de responsabilidade nos postos municipais, atestando que preenchem os requisitos do Bolsa Família. Só que alguns municípios reclamam que não receberam o modelo e estão tendo que improvisar.

Tá um caos sério. Nem na mudança do antigo Bolsa Família para o Auxílio Brasil houve esse rebuliço todo. O que eu tô vendo no dia a dia são pessoas desesperadas, sem saber se vão receber o benefício. São pessoas vulneráveis, [isso] mexe muito comigo. Eu vou adoecer".
Carlilson Medeiros, coordenador do cadastro do Bolsa Família em Triunfo Potiguar (RN)

Todo mundo já chega muito bravo. Primeiro, a pessoa vai para outra cidade para sacar o Bolsa Família, porque aqui não tem Caixa. Lá, avisam que o benefício tá bloqueado e mandam vir aqui [na unidade de cadastramento do Bolsa Família]. Mas aqui tá sem sistema. As pessoas acham que é a gente que não quer liberar"
Talia de Paula, entrevistadora do Cadastro Único em Ervália (MG)

É a gente que enfrenta o povo. Mas não estamos tendo suporte [do governo federal]. O MDS informa para procurar o Cras, mas não estamos conseguindo fazer o desbloqueio, não estamos conseguindo ajudar as famílias. Está uma bagunça, não tem outra palavra. Eu estava sofrendo ameaça, me senti acuada, com medo e tive que solicitar [reforço de] um guarda para fazer a segurança".
Jéssica Lemos, que atua em Riacho de Santana (RN)

O ministério faz posts lindos [nas redes sociais]: 'vá ao Cras, atualize seu cadastro e tenha o desbloqueio e o [pagamento] retroativo'. Mas a gente fica sem saber o que fazer. Explicamos que, sinceramente, não tem previsão [para o sistema voltar]. Só que as famílias estão sem o benefício, que é a principal fonte de renda. Não tem como a pessoa permanecer calma".
Michelle Souza, coordenadora do Cadastro Único em Piquet Carneiro (CE)

Post do MDS com orientações sobre desbloqueio gerou revolta de equipes do Bolsa Família - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Post do MDS com orientações sobre desbloqueio gerou revolta de equipes do Bolsa Família
Imagem: Reprodução/Instagram

Dúvidas sobre eficiência do combate a fraudes

A maior parte dos benefícios bloqueados são de pessoas que dizem morar sozinhas, grupo que cresceu de forma artificial durante a vigência do Auxílio Brasil, criado por Jair Bolsonaro para substituir o Bolsa Família. São os chamados benefícios unipessoais.

Nos anos do Bolsa Família, de 2003 a 2021, entre 13% e 15% dos beneficiários viviam sozinhos. É uma proporção similar à de domicílios com uma só pessoa na sociedade brasileira.

Já em pouco mais de um ano de Auxílio Brasil, o número atingiu 27%.

A explicação está na mudança da lógica de distribuição do benefício social. Em vez de um valor variável, de acordo com o número de pessoas na família, o Auxílio Brasil foi fixado primeiro em R$ 400 e, depois, em R$ 600. Assim, uma família com cinco pessoas recebia o mesmo que uma pessoa solteira.

A suspeita do governo e de especialistas é que, para receber o benefício, pessoas alegaram morarem sozinhas quando, na verdade, vivem com uma família que já está na folha de pagamento do programa ou que têm renda maior do que a permitida.

Para combater essas fraudes, o governo Lula primeiro anunciou que faria visitas domiciliares, para comprovar que se o beneficiário mora mesmo sozinho.

Depois, optou por bloquear um quarto dos benefícios unifamiliares, pedindo que as pessoas compareçam nas unidades municipais do Bolsa Família para se recadastrar. É preciso mostrar comprovante de endereço e assinar o termo de responsabilidade.

Mas equipes municipais do programa duvidam que essa estratégia vá acabar com as fraudes.

O pessoal vai continuar mentindo [que mora sozinho] do mesmo jeito. Primeiro, porque não tem punição. Então a pessoa pensa: se o fulano recebe há tanto tempo e não deu nada, então eu vou continuar [mentindo no cadastro]".
Carlilson Medeiros, coordenador do cadastro do Bolsa Família em Triunfo Potigar (RN)

A visita familiar é mais eficiente [para combater a fraude]. Mas é complicado, porque é muita gente e nós [equipes que gerem o Bolsa Família nos municípios] somos poucos e temos muitas demandas".
Michelle Souza, coordenadora do Cadastro Único em Piquet Carneiro (CE)

Outro lado

Desde 4 de abril, o UOL questiona o MDS sobre o número de bloqueios no Bolsa Família efetuados entre março e abril.

Em 6 de abril, a pasta respondeu que "não houve bloqueios em março".

Então, a reportagem apresentou imagens de extratos do Bolsa Família, físicos e online, que comprovam que houve, sim, bloqueios em março. Também relatou entrevistas com dezenas de pessoas que tiveram o benefício bloqueado naquele mês.

Depois disso, o ministério deixou de responder aos e-mails do UOL — ao todo, foram oito mensagens sem resposta. No meio tempo, anunciou os bloqueios de benefícios unipessoais em abril.

A falta de transparência no Bolsa Família é novidade. Por 16 anos, de dezembro de 2005 a dezembro de 2021 (quando o programa foi substituído pelo Auxílio Brasil), o número de bloqueios foi registrado mensalmente. No período, ocorreram 364 mil bloqueios por mês, em média.