Militares que foram expulsos das Forças Armadas por cometerem crimes ou infrações graves são premiados com pensão vitalícia para suas famílias antes mesmo de sua morte.
O benefício é pago desde 1960, quando foi aprovada uma lei garantindo o direito às famílias de militares expulsos.
Entre os agraciados estão militares condenados por homicídio, tráfico internacional de drogas e tentativa de estupro de vulnerável.
Especialistas ouvidos pelo UOL consideram o pagamento "equivocado", um "privilégio".
[O benefício] Passa a mensagem de que o crime compensa.
Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Só no ano passado, mais de R$ 23 milhões foram pagos pelas Forças Armadas em pensões a famílias de militares expulsos. As pensões mensais variam de R$ 1.500 a R$ 33,4 mil brutos.
Os dados foram obtidos pelo UOL e pela Agência Fiquem Sabendo por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação) e referem-se apenas às pensões pagas pela Marinha e pela Aeronáutica a pouco mais de 300 beneficiários.
O valor está subdimensionado. O Exército Brasileiro, maior das três Forças em termos de pessoas e orçamento, confirmou ter expulsado mais de 17 mil militares nos últimos 50 anos, mas não revelou ao UOL o quanto gasta com essas pensões.
Por que herdeiros ganham pensão por morte de ex-militares vivos?
Militares das três Forças têm, todo mês, 10,5% de seus salários descontados para que seus herdeiros recebam pensão após a sua morte. O benefício é vitalício para cônjuge, e filhos recebem até os 24 anos, segundo a regra vigente.
A lei 3.765/60, promulgada por Juscelino Kubitschek, permitiu não só que aqueles que fossem expulsos não perdessem o direito à pensão, mas que esse pagamento já começasse a acontecer em vida.
Para isso, eles são enquadrados na categoria de "mortos fictos", originalmente reservada a militares desaparecidos sem comprovação de óbito.
Ou seja, para garantirem a pensão por morte em vida, os militares expulsos precisam ser considerados mortos pelas Forças.
Em 2019, na reforma da Previdência feita para militares durante o governo Bolsonaro, a pensão a esses "mortos-vivos" foi mantida, mas determinou-se que o pagamento seja proporcional ao tempo de serviço.
O oficial da ativa, da reserva remunerada ou reformado, contribuinte obrigatório da pensão militar, que perder posto e patente deixará aos seus beneficiários a pensão militar correspondente ao posto que possuía, com valor proporcional ao tempo de serviço.
Artigo da lei 3.765, de 1960, modificado pela reforma previdenciária de 2019
Mesmo não sendo uma novidade, o pagamento de pensões por morte a famílias de militares expulsos veio à tona em maio deste ano com a revelação de que a ex-mulher de Ailton Barros recebe uma pensão mensal de R$ 22,8 mil brutos.
O ex-major foi expulso do Exército em 2006 e agora está preso por suspeita de envolvimento em falsificação de cartões de vacina do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O Ministério Público junto ao TCU (Tribunal de Contas da União) pediu que a pensão paga à ex-esposa de Ailton seja suspensa até que a Corte reavalie o pagamento do benefício aos expulsos.
Barros não é o único
O subtenente da Marinha Alex Felisbino Rosa foi preso em flagrante por acariciar uma menina de 11 anos em um cinema de Cabo Frio, na Região dos Lagos no RJ, em 2013. Condenado a dois anos e oito meses de prisão por tentativa de estupro de vulnerável, Rosa foi expulso da Marinha em 2016 e, desde então, sua família recebe pensão.
Em maio deste ano foram R$ 12,8 mil brutos, o equivalente ao salário integral de um suboficial. A mudança na lei que restringe a pensão ao tempo de serviço —aprovada três anos após a expulsão dele— não afeta Rosa.
Procurado pelo UOL, Rosa admite que cometeu um "erro", mas contestou a sentença e a consequente expulsão das Forças Armadas.
"Não ocorreu toque em partes íntimas de forma nenhuma. Sei que foi um erro de minha parte, onde reconheço e expresso meus pedidos de desculpas à vítima, mas ser condenado por estupro [de vulnerável] por isso é um tremendo exagero."
A lei considera como estupro de vulnerável qualquer ato sexual com menor de 14 anos, mesmo que consentido ou que não haja violência física aparente.
Condenados por homicídio e tráfico
Em 2007, o ex-terceiro-sargento da Marinha Jonymar Vasconcelos foi condenado a 18 anos de prisão por matar uma pessoa que se recusava a consertar de graça as kombis de uma cooperativa de transporte clandestino no RJ.
Jonymar foi expulso e, desde 2012, sua esposa recebe uma média de R$ 6.300 de pensão por mês. No ano passado, ela recebeu ao todo R$ 80 mil.
À Folha de S.Paulo, o ex-militar afirmou que já respondeu pelo crime —ele ficou preso por cinco anos— e que o processo foi extinto.
Hoje, Jonymar é advogado e atuou na defesa de George Santos, brasileiro que é deputado republicano nos Estados Unidos e alvo de investigações por estelionato.
Condenado por tráfico internacional de drogas e expulso da Aeronáutica em 2022, o ex-segundo-sargento Manoel Silva Rodrigues também integra a lista de "mortos-vivos" das Forças Armadas.
Sua família recebe pensão mensal de R$ 5.700, dividida entre dois filhos, companheira atual e ex-esposa. No caso de Rodrigues, como a expulsão se deu após a reforma de 2019 na lei, o valor é proporcional ao tempo de serviço —o salário de um segundo-sargento é de R$ 7.776.
Rodrigues foi preso pela polícia espanhola, em 2019, com 39 kg de cocaína em um avião da comitiva de Jair Bolsonaro.
Ele era um dos 21 militares que acompanhavam o ex-presidente em viagem a Tóquio e foi detido com a droga em Sevilha, na Espanha. Procurada, a defesa dele não quis se manifestar.
Perpetuação de privilégio
Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, vê os pagamentos de pensões às famílias de militares expulsos como um privilégio.
"A forma como esses benefícios são pagos desresponsabiliza as pessoas que cometem crimes nessas corporações de qualquer preocupação com o futuro da família porque está garantido que terá a pensão", analisa.
O sociólogo salienta a diferença desse modelo com o do auxílio-reclusão do INSS, que paga até um salário mínimo a famílias de presos civis enquanto durar a pena.
"O que causa mais indignação é que, enquanto para a população como um todo o auxílio dura o tempo de reclusão, no caso do sistema [dos militares] a pensão dura para o resto da vida."
Para o economista Paulo Sérgio Tafner, os herdeiros dos militares expulsos só deveriam receber as pensões após a morte deles.
"Isso tem que mudar, óbvio. A lei está errada. O benefício tem que ser pago para proteger a viúva", afirma.
Lucas Furtado, procurador do Ministério Público no TCU, classifica o benefício como uma "gritante quebra da isonomia com o setor privado".
Comentando o caso do ex-major Ailton Barros, Furtado ainda enxerga possível irregularidade nos pagamentos à ex-mulher do militar.
"[A lei que autoriza as pensões] é aplicada de forma totalmente equivocada, dentre outras hipóteses, porque a lei fala que a pensão deve ser proporcional e pelo menos nesse caso isso não tem ocorrido."
Procurado, o Exército informou que a reforma previdenciária que estipulou o pagamento proporcional ao tempo de serviço ainda não havia sido aprovada quando Barros foi expulso, em 2006.
A defesa de Ailton Barros não foi localizada para comentar a reportagem.
Pensões custam bilhões
Em maio, o UOL publicou reportagem revelando que, nos últimos quatro anos, as Forças Armadas juntas gastaram R$ 94 bilhões para pagar pensões a herdeiros de militares.
O valor seria suficiente para bancar o Bolsa Família a quase 3 milhões de famílias pelo mesmo período.
Embora parte dessas pensões seja paga com dinheiro da contribuição compulsória dos militares, a maior parcela ainda é coberta pela União. Ou seja, com o nosso dinheiro.
*Colaboraram José Roberto de Toledo e Silvia Ribeiro
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