Caso Marielle: firmas imobiliárias pagaram R$ 3,3 mi a mulher de delegado
Empresas controladas pela gestora de ativos Brookfield transferiram pelo menos R$ 3,3 milhões a contas de uma empresa da advogada Érika Andrade de Almeida Araújo, mulher do delegado Rivaldo Barbosa de Araújo Júnior, acusado de envolvimento no assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e do motorista dela, Anderson Gomes.
As informações foram apuradas pela Polícia Federal com base em dados do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) e constam do relatório final do inquérito que investigou o crime. Segundo a PF, a consultoria Armis, que está em nome de Érika, era um meio para dissimular pagamentos destinados ao delegado.
Relacionadas
Rivaldo Barbosa era chefe da Delegacia de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro na época do assassinato - dez dias depois do crime, foi promovido a chefe de polícia. Segundo a PF, Rivaldo recebeu R$ 400 mil para garantir a impunidade dos suspeitos de serem os mandantes - os irmãos Domingos Brazão, conselheiro no TCE-RJ (Tribunal de Contas do Estado do Rio), e Chiquinho Brazão, deputado federal pelo União Brasil do Rio de Janeiro. Os três estão presos preventivamente desde 24 de março.
Segundo o Coaf, Armis recebeu R$ 3,9 milhões de diferentes fornecedores entre junho de 2016 e agosto de 2020. Só que 84% desse valor vieram de construtoras ou imobiliárias controladas pela Brookfield.
A Armis recebeu 256 transferências bancárias de clientes no período investigado, segundo o Coaf. Desse total, 229 transferências foram feitas por empresas controladas pela Brookfield, o que corresponde a 89% dos envios.
Procurada pelo UOL ao longo da última semana, a defesa de Érika e Rivaldo Barbosa manifestou-se apenas depois que esta reportagem foi publicada.
O advogado Felipe Dalleprane afirmou que as empresas dela "efetivamente prestaram os serviços para os quais foi contratada, com a emissão das respectivas notas fiscais e com as operações integralmente escrituradas, tudo já devidamente declarado à Receita Federal".
"Assim, é falsa a premissa de que Érika Araújo não tinha expertise para a prestação de serviços, bem como, que era "testa de ferro" do marido. Dito de outro modo, o relatório da PF é puramente ficcional", disse o advogado, em nota enviada ao UOL.
A íntegra da nota está disponível no final do texto.
A Brookfield é uma multinacional canadense de gestão de ativos. Ao todo, tem mais de US$ 900 bilhões sob gestão globalmente. No ramo imobiliário, administra US$ 276 bilhões em empreendimentos em várias grandes cidades no mundo inteiro.
No caso da Armis, as transferências foram feitas por meio de empresas do ramo imobiliário ou da construção civil que têm a Brookfield como sócia ou controladora indireta.
São as empresas Aparine Empreendimentos; TG Rio de Janeiro Empreendimentos; TG Centro-Oeste Empreendimentos Imobiliários; TGRJ Empreendimentos Imobiliários; e TGRJ Empreendimentos Econômicos.
Procurada pelo UOL, a Brookfield disse que as empresas que transferiram dinheiro para a Armis "fazem parte do portfólio das companhias Tegra Incorporadora e Erbe Incorporadora", e por isso ela não poderia falar sobre os envios de dinheiro - embora ambas as empresas sejam controladas pela Brookfield, conforme informam em seus balanços e comunicações institucionais.
Por email, a Erbe disse que a Armis "prestou serviços de consultoria em segurança para empreendimentos no Rio de Janeiro", mas as relações contratuais foram encerradas em 2019.
Já a Tegra disse que "não mantém relação contratual" com a Armis desde 2020. E que "a fornecedora em questão realizou consultoria em análise de riscos e segurança para antigos terrenos, stands de vendas e canteiros de obras localizados no Rio de Janeiro".
Tanto a Tegra quanto a Erbe e suas controladas existem de maneira independente, com CNPJs próprios. Mas são controladas pela Brookfield por meio de sociedade direta ou de alguma empresa constituída pela gestora de ativos para integrar o quadro societário dessas construtoras.
É uma prática corrente no mercado de ativos imobiliários. Em vez de a própria gestora comprar imóveis ou contratar obras, ela constitui outras empresas ou se associa a terceiros para investir nos empreendimentos de maneira indireta. Dessa forma, não é a própria gestora - no caso, a Brookfield - quem contrata a obra ou compra o imóvel, mas uma das empresas controladas por ela.
Por isso, o ramo de atividade no qual está a Brookfield é chamado de gestão de ativos: a gestora não se envolve na obra, mas apenas nas operações financeiras relacionadas aos imóveis.
Empresa de fachada
A Armis foi aberta em abril de 2016 como uma empresa de "atividades de consultoria em gestão empresarial, exceto consultoria técnica". Um mês depois, Rivaldo foi nomeado chefe da Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio.
Érika é a única sócia da Armis - entre dezembro de 2014 e maio de 2018, ela foi sócia de outra consultoria com o marido, a Mais I Consultoria.
Só que, segundo a PF, a Armis é uma empresa de fachada que na verdade é administrada diretamente por Rivaldo Barbosa. A única finalidade da consultoria, dizem os investigadores, é receber pagamentos na verdade destinados ao delegado.
No relatório do inquérito, os policiais anexaram prints de trocas de emails e transcrições de mensagens entre Rivaldo e clientes da Armis. São conversas em que ele enviou o portfólio da consultoria a vendedores de carros, ou cobrou fornecedores por causa de problemas em contratos - um deles, com a Light, concessionária de energia elétrica de 31 municípios do Rio, que transferiu R$ 160 mil à Armis.
São "evidências de que Rivaldo Barbosa era o administrador de fato das sociedades empresárias e era o responsável pela interlocução com clientes e apresentação do portfólio de serviços", diz a PF.
"Caso de sucesso"
Entre maio e dezembro de 2017, a Armis reportou lucro de R$ 558 mil, "mostrando seu absoluto sucesso no mercado pouco tempo após ser constituída", segundo a PF.
As investigações apontaram que a companhia presta serviços de compliance, inteligência e gestão financeira e segurança patrimonial de condomínios. Mas os investigadores afirmam que "é latente que Érika não possui expertise em tais serviços".
Apesar disso, a PF diz que as consultorias mudaram a vida de Érika. Antes de abrir a primeira empresa com o marido, no final de 2014, o maior salário da advogada havia sido de R$ 4.800, na Prefeitura do Rio de Janeiro. Depois, passou a ser de R$ 28,9 mil, segundo o Coaf.
Outro indício levantado na investigação é que Érika foi quem mais retirou dinheiro das contas da Armis no período investigado. Nos cinco anos analisados, a advogada retirou R$ 1,2 milhão das contas da empresa, por meio de 135 transferências bancárias e quatro saques em espécie. As maiores saídas além das retiradas de Érika foram para pagamento de impostos.
Outro lado
Procurada pelo UOL ao longo da última semana, a defesa de Érika e Rivaldo Barbosa enviou a seguinte nota depois de a reportagem ser publicada:
"Érika não é acusada, pois a investigação sequer foi concluída.
"O relatório da PF trata somente de movimentação financeira, baseado em dados do Coaf que apontam exclusivamente entradas e saídas. Ou seja, o relatório da PF é baseado estritamente na presunção, porque não há análise dos documentos contábeis e dos contratos de prestação de serviços.
"As empresas de Érika efetivamente prestaram os serviços para os quais foi contratada, com a emissão das respectivas notas fiscais e com as operações integralmente escrituradas, tudo já devidamente declarado à Receita Federal.
"Cabe destacar ainda que os documentos apreendidos na busca e apreensão na casa de Érika e no escritório de sua empresa demonstram a total regularidade das operações das empresas envolvidas nos contratos.
"Destaque-se especialmente que Erika Araújo possui formação em Direito e Administração, bem como, especialização em compliance, ou seja, é capacitada justamente na área de atuação das empresas da qual é sócia.
"Assim é falsa a premissa de que Erika Araújo não tinha expertise para a prestação de serviços, bem como, que era "testa de ferro" do marido.
Dito de outro modo, o relatório da PF é puramente ficcional".