Quebrou tornozeleira com faca e deixou país de ônibus: a fuga de réu do 8/1
Réu em razão dos ataques golpistas de 8 de Janeiro, o vendedor Luiz Fernandes Venâncio, 50, relatou ao UOL ter fugido do país após quebrar a tornozeleira eletrônica com uma faca e pegar um ônibus na rodoviária do Tietê, em São Paulo. Ele chegou ao Uruguai em 18 de março e, dois dias depois, ingressou na Argentina, onde hoje vive com a esposa.
Venâncio e outros dois foragidos do 8 de Janeiro falaram em maio com a reportagem do UOL na Praça de Maio, diante da Casa Rosada, a sede do governo argentino, em Buenos Aires.
"Eu acho que a expressão é: 'Viva la libertad, carajo!' [viva a liberdade, caramba]", disse Venâncio bem humorado, citando o slogan de campanha do ultraliberal Javier Milei, presidente argentino. Ele afirma morar em um apartamento alugado no bairro nobre da Recoleta e se sustentar com a venda de cosméticos e pulseiras verde-amarelas, chamadas de "patriotas".
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A Polícia Federal fez na última quinta (6) operação que mirou 208 foragidos e sob risco de fuga envolvidos com os atos do 8 de Janeiro. Até ontem, 50 foram presos por ordem do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes, e 158 continuavam sendo procurados.
A ação ocorreu após o UOL revelar que ao menos dez condenados ou investigados fugiram do Brasil -o destino da maioria foi a Argentina. A PF quer a extradição dos fugitivos e que seus nomes sejam incluídos na lista da Interpol (polícia internacional).
Ao UOL, os foragidos —que se dizem perseguidos políticos e querem obter refúgio— relataram facilidade na fuga tanto para se livrar da tornozeleira como para ingressar no Uruguai e na Argentina.
"Se estivessem tão preocupados com as fronteiras, não entrava tanta arma e droga no Brasil [...] A fronteira no Brasil não é uma peneira, é uma porta escancarada, é a porta para a [casa da] mãe Joana", comparou Venâncio. Ele disse que não teve de se identificar em nenhum momento durante a fuga.
Venâncio fez pedido de refúgio na Argentina e afirma que tem ajudado outros fugitivos a fazerem o mesmo. Mais de 60 brasileiros já pediram refúgio ao governo argentino, segundo fontes relataram ao UOL.
Estou ajudando o pessoal como intérprete para as solicitações [de refúgio ao governo argentino]. É um trabalho voluntário. Ajudo na condução de documentos, envios de emails, na construção das cartas [com] os relatos de todos. São pessoas comuns e inocentes.
Luiz Fernandes Venâncio, foragido do 8/1
A fuga
Em 18 de março, Venâncio diz ter acordado às 5h e se dirigido à sua empresa, onde vendia pulseiras verde-amarelas e cosméticos no bairro do Tucuruvi, zona norte de São Paulo. Lá, afirmou ter cortado a tornozeleira com uma faca e tirado o chip do celular. Quatro horas depois, disse que chegou à rodoviária do Tietê, na zona norte da capital paulista.
Com um telefone emprestado, contou ter pedido dinheiro vivo à esposa para a fuga. Segundo relata, embarcou em um ônibus com destino a Montevidéu, no Uruguai.
"Eu saí de São Paulo, desci até o Rio Grande do Sul, passei pelo Uruguai. O Uruguai tem um custo de vida mais alto. Lembrei de um amigo em Córdoba [que disse]: 'Luiz, se você quer empreender, é a Argentina'." Foram apenas dois dias para o ingresso na Argentina e dez para chegar a Buenos Aires.
Venâncio mostrou ao UOL um documento da Comissão Nacional para os Refugiados, órgão do Ministério do Interior da Argentina, que autoriza sua permanência provisória até 22 de julho. O documento impede que seja preso mesmo havendo contra ele ordem de prisão expedida por Moraes, segundo relataram à reportagem policiais federais e um advogado argentino especialista em imigração.
Noites em abrigo e almoços em igreja
Marco Antônio Iglesias Simal, 31, também réu no STF em razão dos atos golpistas do 8 de Janeiro, disse que chegou à Argentina em 26 de março, na mesma época de Venâncio.
Morador de Taubaté (SP), Simal disse morar em um abrigo e almoçar em igrejas em Buenos Aires. Segundo ele, está desempregado e não sabe falar espanhol.
"Eu tinha dinheiro guardado e esse dinheiro durou apenas um mês e acabou", contou. Ele relata que consulta a internet e percorre as ruas de Buenos Aires diariamente em busca de trabalho.
Apesar das dificuldades, disse não se arrepender de nada: "Sua liberdade vale mais do que isso, você não concorda?".
Segundo denúncias do Ministério Público Federal, Venâncio e Simal acamparam em frente ao QG do Exército em Brasília "incitando, publicamente, animosidade das Forças Armadas contra os Poderes Constitucionais".
Presos no dia seguinte aos atos golpistas, ambos negam ter entrado ou depredado os prédios dos Três Poderes no 8 de Janeiro.
Acusados de dois delitos —incitação ao crime e associação criminosa—, eles receberam a oferta de encerrar seus processos com um acordo, mas rejeitaram. No caso de Venâncio, a PGR (Procuradoria-Geral da República) pediu sua prisão quando o flagrou em uma manifestação bolsonarista no litoral paulista após o 8 de Janeiro.
Imagem de bandido e críticas a Moraes
Diferentemente de Venâncio e Simal, o pedreiro e vendedor Daniel Bressan, 37, disse que não se sente seguro na Argentina. Ele se recusou a aparecer no vídeo da entrevista. Está no país vizinho ao menos desde 24 de abril, como revelou o UOL.
"Na minha opinião, bandido tem que se lascar mesmo", afirmou Bressan. "E a gente ser visto como tal, isso é o pior", continuou.
Ele ficou alguns meses preso no Brasil depois dos ataques, obteve liberdade condicional com tornozeleira, mas também quebrou o equipamento e fugiu para a Argentina. "Eu prefiro morrer do que passar por aquilo [prisão e uso de tornozeleira] de novo."
Com ajuda de um primo no Brasil, fez uma rifa de um Fiat Uno na internet para se financiar. Para viajar à Argentina, Bressan diz ter juntado R$ 14 mil trabalhando como pedreiro em Jussara (PR), onde morava. Ele também vendeu pulseirinhas de Venâncio.
Réu no STF desde fevereiro, Daniel Bressan foi acusado pela PGR de participar dos ataques golpistas do 8 de Janeiro em cinco crimes: tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do estado de direito, dano qualificado, destruição de bem protegido e associação criminosa.
Ele nega os crimes. Também diz que não entrou no Palácio do Planalto. Laudo da PF que comparou imagens de Bressan às de uma pessoa que estava no prédio afirma que apenas a orelha do fugitivo se assemelha às imagens das câmeras de segurança.
Venâncio não poupou de críticas Alexandre de Moraes, relator dos processos dos foragidos no STF. O vendedor chamou o ministro do STF de ditador.
"Peço ao senhor, quando colocar a cabeça no travesseiro, pensar em vidas que o senhor está afetando, em famílias que o senhor está destruindo com decisões arbitrárias. Que o senhor possa rever com muito carinho porque Deus está vendo tudo, e Deus sabe do nosso caminho e nosso futuro."
"A gente só quer Justiça. Sei dos meus direitos. Vale a pena lutar pela sua liberdade. Se você não tiver cometido nenhum crime, muito mais", concluiu Simal.