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Encenação antiaborto no Senado irrita Pacheco e reforça estigma de mulheres

Do UOL, em São Paulo

17/06/2024 21h43

A encenação de um feto chorando no plenário do Senado irritou o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Ações como essa, além do uso de réplicas de fetos e da criação de projetos de lei para que gestantes que procuram serviços de aborto legal ouçam os batimentos cardíacos do feto, sujeitam mulheres e meninas que passaram por violência sexual a mais sofrimento.

O que aconteceu

A encenação e simulação de um aborto por uma contadora de histórias irritou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O UOL apurou que o senador assistiu à sessão pela televisão e ficou incomodado com o que viu. Pacheco teria demonstrado irritação pelo fato de o plenário ter sido usado como "teatro".

A irritação do presidente do Senado também ocorreu pela "falta do contraditório". Pacheco teria se incomodado ainda pela ausência da bancada feminina do Senado na sessão de debates que ocorreu na segunda-feira. Dos 17 convidados para a audiência no plenário da Casa, 15 se posicionaram contra o procedimento.

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Críticas à encenação da contadora de histórias estão previstas para esta terça-feira (18). O UOL apurou que a encenação feita por Nyedja Gennari, assistida e gravada por senadores, será alvo de críticas na sessão da ordem do dia. A realização do evento ontem atendeu a um requerimento do senador Eduardo Girão (Novo-CE).

Estratégias como a encenação e o uso de réplicas de feto revitimizam mulheres que passaram por violência sexual. Para a presidente da Comissão do Observatório Eleitoral da OAB-SP, Maíra Rechhia, o episódio reflete ações de violência parlamentar. "Propor um projeto de lei é uma função inerente a um parlamentar, mas o que aconteceu foi o fomento à discriminação entre gênero, a promoção de tratamento desumano e degradante."

Incitação à violência legislativa

A advogada classifica o episódio como incitação à violência legislativa. "A postura de hoje configura quebra de decoro parlamentar porque é desprovida de qualquer compromisso com a ética e a verdade. É uma encenação com o objetivo de causar tumulto na sociedade."

Para haver quebra de decoro parlamentar, é preciso haver denúncia. Segundo a assessoria da Câmara dos Deputados e do Senado, só assim a conduta dos parlamentares pode ser objeto de análise do Conselho de Ética das Casas. "Isso não é o que se espera de uma pessoa eleita para representar a população", diz Maíra. "A política é feita de ideias diferentes, mas não há uma verdade absoluta que possa justificar essa postura, não se pode admitir a incitação ao ódio."

Conselhos de Ética das Casas deveriam ser mais atuantes, diz advogada. O UOL apurou com assessores parlamentares que o senador Eduardo Girão não deve ser responsabilizado, uma vez que não se tratou de uma sessão ordinária do Senado, e sim de uma audiência que ocorreu no plenário da casa.

Quebra de decoro parlamentar pode culminar em punições que vão de advertência a cassação. "Qualquer falha nessa questão ética pode ensejar uma representação ou procedimento ético disciplinar", diz a advogada.

Direito à livre manifestação é mal utilizado, avalia Silvia Virginia Silva de Souza, conselheira federal e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB. "As comissões de ética funcionam como mecanismos de fiscalização. A meu ver, essa livre manifestação é mal utilizada. Cabe o respeito à dor das vítimas e não o aviltamento à dignidade das vítimas de estupro."

Violência legislativa se caracteriza quando se fomenta o discurso de ódio com falas desconexas da realidade. Nesse caso, protegendo até mesmo o agressor.
Maíra Rechhia, presidente da Comissão do Observatório Eleitoral da OAB-SP

Revitimização

A interpretação de um feto ocorreu em debate no Senado na segunda-feira (17), atendendo requerimento do senador Eduardo Girão. A sessão recebeu apenas convidados contra o aborto — todos criticaram o método de assistolia fetal, recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde).

A sessão de hoje não foi a primeira vez em que parlamentares encenaram um procedimento de aborto. No fim de maio, o deputado Zacharias Calil (União-GO) encenou, no plenário da Câmara, um procedimento de assistolia fetal — técnica utilizada para a interrupção de gestações acima de 22 semanas. Ele levou bonecos de borracha para representar o abdômen de uma mulher grávida e um feto na fase final de gestação.

Em abril do ano passado, Girão tentou entregar um feto de plástico para o ministro Silvio de Almeida (Direitos Humanos). "Já que a gente entrou na questão da dignidade humana, vou materializar com a entrega dessa criança com 11 semanas de gestação", disse o senador durante audiência pública. O ministro rejeitou o boneco e classificou a atitude como um "escárnio". A senadora Damares Alves (Republicanos) também participou da ação de Girão.

Goiás criou em janeiro uma ação antiaborto que prevê a entrega de exames de batimentos cardíaco do feto às gestantes. O governador do estado, Ronaldo Caiado (União Brasil), sancionou uma lei que determina que o estado forneça o exame de ultrassom.

Cidade do Rio Grande do Sul aprova projeto que incentiva que vítimas de estupro recebam exames do feto. O projeto aprovado pela Câmara de Vereadores de Santa Maria no ano passado incentiva profissionais da saúde a sugerir exames para convencer vítimas de estupro a desistir do aborto. "Esse tipo de ação expõe a vítima a uma violência institucional. Ouvir os batimentos do feto produto de um crime é uma violência com a chancela do Estado", disse Maíra.

Iniciativas legislativas revitimizam pessoas vítimas de violência sexual. "Essas ações expõem mulheres a mais uma violência. Colocam as mulheres numa posição de retrocesso e de tratamento cruel, degradante, fazendo com que elas se deparem novamente com a violência, em vez de serem acolhida pelo Estado, elas são revitimizadas", diz Maíra.

"Violência estatal com o apoio da legislação", diz a advogada. Para ela, o comportamento desses parlamentares faz as vítimas reviverem episódios de violência. "Ela tem que ouvir o barulho do coração do bebê, tem que passar por um processo judicial doloroso para ter o mínimo de garantia de fazer o aborto que seria considerado legal para aquele caso."

É uma segunda violência, por vezes, tão cruel quanto a primeira, já que elas não são acolhidas, mas expostas a mais uma situação de sofrimento.
Maíra Rechhia, presidente da Comissão do Observatório Eleitoral da OAB-SP

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