'Era criança e ouvia como foi a tortura contra meu pai antes de ele morrer'
![Após a morte do pai, família morou em Cuba, onde era possível falar sobre a ditadura - Arquivo pessoal](https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/17/2025/01/27/apos-a-morte-do-pai-familia-morou-em-cuba-onde-era-possivel-falar-sobre-a-ditadura-1738013369826_v2_450x337.jpg)
![Após a morte do pai, família morou em Cuba, onde era possível falar sobre a ditadura - Arquivo pessoal](https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/17/2025/01/27/apos-a-morte-do-pai-familia-morou-em-cuba-onde-era-possivel-falar-sobre-a-ditadura-1738013369826_v2_450x337.jpg.webp)
Luciana Spacca
Colaboração para o UOL
29/01/2025 05h30
"Todos nós que tivemos um parente desaparecido somos um pouco Paiva", diz o engenheiro Gregório Gomes da Silva, 57, sobre a família de Rubens Paiva, ex-deputado morto pela ditadura militar no Brasil.
Em 2 de março, quando o Brasil vai parar para assistir à premiação do Oscar, torcendo pelo filme "Ainda Estou Aqui", Gregório verá também um pouco da própria história ganhar projeção internacional.
Mas, passada a euforia, a vida voltará à mesma estaca. Ainda não se saberá onde estão enterrados [os mortos pela ditadura] ou o que fizeram com seus corpos, de quem partiu a ordem e quem foram seus algozes.
Gregório Gomes da Silva
Entre os mortos a que Gregório se refere está Virgílio Gomes da Silva, seu pai.
"Meu pai foi torturado e morto em 1969 [aos 36 anos]. Foi um dos primeiros a morrer sob tortura e a ser considerado 'desaparecido'", diz o engenheiro.
O UOL ouviu histórias de pessoas que, como Gregório e os filhos de Rubens Paiva, cresceram marcadas pela ditadura militar.
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Pai, mãe e irmãos levados
Nascido em Santa Cruz (RN), Virgílio se mudou para a capital paulista, onde trabalhou como garçom, balconista, mensageiro, guarda e operário.
Em 1957, ingressou no PCB (Partido Comunista Brasileiro) e passou a integrar o Sindicato dos Químicos e Farmacêuticos de São Paulo —era um líder e comandou uma greve de 3.000 operários.
Na ditadura, integrou a dissidência do PCB e passou a atuar como militante da ALN (Ação Libertadora Nacional), um dos grupos que lutava contra o regime militar, em São Paulo.
Virgílio foi assassinado em São Paulo, deixando quatro filhos: Gregório tinha pouco menos de 2 anos quando ele morreu.
Nem a mãe de Gregório e nem seus irmãos foram poupados: Ilda Martins foi sequestrada em São Sebastião (SP), com três de seus quatro filhos: Vlademir (8), Virgílio (7) e Maria Isabel, um bebê de quatro meses. Gregório não foi levado por estar em outra casa.
Ilda ficou presa durante nove meses —incomunicável e sem notícia dos filhos por quatro meses. As crianças foram enviadas ao Juizado de Menores e ameaçadas por agentes da ditadura de serem entregues para adoção.
"Minha mãe também foi presa e torturada", resume Gregório. "A gente ainda levou um tempo para sair do país. Fomos primeiro para o Chile, em 1972, e depois para Cuba, em 1973", lembra. No país caribenho, viveu boa parte da vida.
'Ouvia relatos da tortura'
Gregório conta que, desde pequeno, sabia dos motivos de estar em outro país.
"Eu sabia o que tinha acontecido com o meu pai e como era a situação no Brasil porque minha mãe me contava e lá nós podíamos falar abertamente sobre isso. As crianças mais velhas contavam para as mais novas."
Histórias nada infantis faziam parte do repertório de conversas do menino.
"Tem uma história de um companheiro de luta do meu pai que estava sendo torturado e o viu antes de ele morrer", diz Gregório.
Em algum momento, os torturadores trouxeram meu pai para dentro da sala onde esse amigo estava e ele pensou que era um alívio, porque pararam de bater nele para bater no meu pai. É esse tipo de relato que eu ouvia quando era criança.
Gregório Gomes da Silva
Informações colhidas pela Comissão Nacional da Verdade, anos mais tarde, indicam que Virgílio foi algemado e agredido por cerca de 15 pessoas, que lhe davam pontapés e cuspiam em seu rosto. Depois, levado a outra sala, foi torturado até a morte.
'Cresci como uma criança cubana'
O exílio fez o engenheiro demorar para se reconhecer como brasileiro.
"Eu fui crescendo como uma criança cubana, embora eu soubesse que existiam diferenças", diz. "Minhas maiores referências na época eram Pelé e Roberto Carlos. Eu lia Jorge Amado, mas o meu Jorge Amado falava espanhol, porque eram edições feitas em Cuba."
No Brasil, quando falavam do meu pai, era em capa de jornal como terrorista procurado. Em Cuba, ele era considerado herói.
Gregório Gomes da Silva
Mesmo após o fim da ditadura, a incerteza sobre retornar ao Brasil era tão grande que o engenheiro só voltou ao país em 1990.
'Torturadores andavam pelas ruas'
"Fui o primeiro da minha família a voltar. Como em Cuba a gente podia falar sobre tudo abertamente, não vivi esse pacto de silêncio que as crianças no Brasil viveram à época. Sempre teve um peso emocional, mas não era um fantasma", diz.
Quando chegou aqui, "sabia quem eram os torturadores do meu pai e que eles estavam andando pelas ruas".
Foi já na fase adulta que ele passou a sentir o peso de não conseguir conversar sobre o assunto. "Eu já não falava mais tão abertamente."
"Minha mãe foi a última a voltar para o Brasil, apenas em 1993. A Lei da Anistia foi criada para os militares se autoanistiarem, porque a anistia deles foi imediata. A da minha mãe só veio depois que ela entrou com o processo, quase 30 anos depois."
Assim como aconteceu com muitos filhos e netos de presos políticos mortos durante a ditadura, Gregório só conseguiu o atestado de óbito do pai por meio da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, em 2014.
Foi ali que, finalmente, a gente conseguiu o verdadeiro atestado de óbito do meu pai, dizendo que ele foi morto fruto da violência do Estado, promovida durante o período da ditadura militar.
Gregório Gomes da Silva
"É uma reparação que o Estado devia, e deve, às famílias."
Entenda as leis e comissões
Lei da Anistia
- Em 1979, o Brasil promulgou a Lei da Anistia. Além de conceder perdão aos presos e perseguidos políticos durante a ditadura, a lei também isentou de responsabilidade os agentes do Estado que cometeram crimes de tortura e assassinato no período.
Comissão sobre Mortos e Desaparecidos
- A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos foi criada em 1995, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, com o objetivo de examinar os crimes cometidos durante a ditadura militar para localizar e reconhecer os desaparecidos e mortos no período.
Comissão Nacional da Verdade
- A Comissão Nacional da Verdade foi instalada em 2012, no governo da presidente Dilma Rousseff, para apurar violações dos direitos humanos no Brasil entre 1946 e 1988. O relatório final entregue pela comissão apurou que ocorreram 434 mortes e desaparecimentos de pessoas vítimas da ditadura militar.
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