'Ainda Estou Aqui' não é história única: 'Disseram que meu pai se enforcou'

Na noite em que meu pai morreu, tive uma febre muito forte, mas só fui saber da morte dele meses depois.

A professora Marta Moraes Nehring, 60, tinha só 6 anos quando viu o pai pela última vez. Norberto Nehring foi preso, torturado e morto pela ditadura militar, aos 29 anos de idade, em 1970.

Desde pequena, Marta conviveu com a dor, o silêncio e a dúvida. Ela foi uma de dezenas de crianças que tiveram a infância sequestrada pela ditadura.

Nos últimos meses, a história da família Paiva, cujo patriarca foi morto pelos militares, ganhou repercussão no Brasil e no exterior com o filme "Ainda Estou Aqui", indicado ao Oscar na categoria principal.

O longa foi produzido a partir das memórias narradas no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, que, à época do desaparecimento do pai, também era apenas uma criança. Rubens Paiva foi morto em 1971 pela ditadura militar —seu corpo jamais foi encontrado.

O UOL ouviu histórias de pessoas que cresceram marcadas pela ditadura militar. Crianças que entendiam ainda pouco sobre política, mas aprenderam desde cedo o que significam a violência e a repressão.

'Era criança, mas me lembro de a polícia estar lá'

Norberto Nehring era economista e professor da USP. Filou-se ao PCB (Partido Comunista Brasileiro) e, com a ditadura, passou a atuar na ALN (Ação Libertadora Nacional), um dos grupos que lutavam contra o governo militar, em São Paulo.

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 Marta, a mãe e o pai; família foi para Cuba, mas Norberto nunca mais voltou
Marta, a mãe e o pai; família foi para Cuba, mas Norberto nunca mais voltou Imagem: Arquivo pessoal

Na manhã do dia 7 de janeiro de 1969, a casa onde morava com a esposa e Marta foi cercada por um grupo de policiais do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), polícia política mais antiga do país, que levaram Norberto preso.

Ele foi solto, após mais de dez dias, para ir ao aniversário de Marta, e "passou para a clandestinidade": sabia que voltaria a ser preso e torturado como aconteceu com todos os acusados do mesmo caso, relatou a esposa, Maria Lygia.

As lembranças dessa época são como flashes na cabeça de Marta. "Por mais que eu fosse criança, me lembro de chegar em casa e a polícia estar lá. Isso não se apaga", diz a filha.

'Montaram uma versão falsa'

Em abril do mesmo ano, Norberto saiu do país com destino a Cuba —Marta e a mãe foram para lá meses depois.

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Ele havia feito um treinamento militar no país caribenho. "E havia uma sentença de morte implícita para todos aqueles que haviam treinado lá."

De volta ao Brasil, Norberto foi "preso, torturado e morto", conta Marta. "Eles mataram o meu pai e enterraram o corpo com um nome falso. Só os familiares que estavam no Brasil ficaram sabendo."

A polícia montou uma versão falsa para a morte dele, uma versão de suicídio. Durante a minha infância inteira, até 1997, eu tinha um atestado de óbito que dizia que ele tinha se enforcado.
Marta Nehring

Marta e a mãe retornaram ao Brasil apenas em 1975 —ainda silenciadas. "Quando voltei, não podia falar quem era o meu pai."

"Existe uma consequência perversa da repressão, que é o medo. E o medo se espalha por onda. Esse medo resultou no silenciamento", diz ela.

Quando você cresce não podendo falar quem você é, qual é a sua história, você incorpora esse medo à sua subjetividade. É muito difícil ter controle sobre isso, porque é algo que vem no berço.
Marta Nehring

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'Quero saber onde foi enterrado'

Assim como os Paiva, a família Nehring foi uma das primeiras a conseguir um atestado de óbito com as causas verdadeiras da morte de Norberto.

"É muito pouco, está longe de ser justiça. Até hoje, eu não sei quem matou o meu pai. Eu tenho o direito de saber, quero saber onde ele foi enterrado", diz a filha.

Marta e o pai, Norberto; desde pequena, Marta conviveu com a dor, o silêncio e a dúvida
Marta e o pai, Norberto; desde pequena, Marta conviveu com a dor, o silêncio e a dúvida Imagem: Arquivo pessoal

Para Marta, um dos problemas é que o ônus da prova sobre os responsáveis pelas mortes continua sendo das famílias que perderam seus parentes.

Eu não quero ir à padaria amanhã e encontrar alguém que é um torturador, não saber que é, e sorrir, dizer bom dia, porque é um velhinho.
Marta Nehring

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E uma de suas maiores dores é não ter tido a chance de se despedir. "Isso de não ver o corpo, de não estar presente no enterro, não ter a cerimônia é horrível."

Durante a minha infância inteira, e confesso que até hoje, às vezes eu acho que ele pode estar vivo. Eu sei que ele está morto, mas é um fantasma muito grande, é uma fantasia íntima da criancinha, ainda procurando por ele.
Marta Nehring

'Repressão se espalha como pólvora'

Para ela, a violência política não foi restrita a quem foi morto. "Tem os vizinhos, as pessoas que viam a polícia chegar. Esse é o efeito social da repressão: ele vai se espalhando como rastro de pólvora."

Marta vê falhas na forma como o Brasil trata esses casos.

"O Brasil é um país que, historicamente, não repara os seus erros. A gente toca para frente. 'Tão alegre, tão descontraído, tão receptivo, não vamos ficar falando nessa época ruim'. Não: é importante falar para não ser esquecido, para que não se repita", afirma.

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Assistir à história de Rubens Paiva chegando tão longe com o filme "Ainda Estou Aqui" é, para Marta, uma forma de reafirmar que, sim, eles sempre estiveram aqui. "Nós, os parentes, os vivos, sempre estivemos aqui, a gente nunca deixou de estar aqui. Nunca paramos de brigar por reparação."

Já ouvi de pessoas que são queridas, próximas, que a questão dos mortos e desaparecidos durante a ditadura é um problema das famílias. Porque, claro, 60 anos depois, parece realmente um problema apenas das famílias. Ao trazer o assunto à tona, o filme mostra que não é um problema só das famílias: é uma questão do Brasil.
Marta Nehring

Entenda as leis e comissões

Lei da Anistia

  • Em 1979, o Brasil promulgou a Lei da Anistia. Além de conceder perdão aos presos e perseguidos políticos durante a ditadura, a lei também isentou de responsabilidade os agentes do Estado que cometeram crimes de tortura e assassinato no período.
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Comissão sobre Mortos e Desaparecidos

  • A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos foi criada em 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso, com o objetivo de examinar os crimes cometidos durante a ditadura militar para localizar e reconhecer os desaparecidos e mortos no período.

Comissão Nacional da Verdade

  • A Comissão Nacional da Verdade foi instalada em 2012, no governo de Dilma Rousseff, para apurar violações dos direitos humanos no Brasil entre 1946 e 1988. O relatório final entregue pela comissão apurou que ocorreram 434 mortes e desaparecimentos de pessoas vítimas da ditadura militar.

ENVIE SUA HISTÓRIA: acha que a sua história de vida merece uma reportagem? Envie um resumo para o email enviesuahistoria@uol.com.br. Se possível, já envie fotos e os detalhes que nos ajudarão a avaliá-la. A redação do UOL pode entrar em contato e combinar uma entrevista.

39 comentários

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Fabio Benitez Correa

Em uma democracia você pode até pedir a volta da ditadura. É estúpido, mas pode. Só não pode atentar contra a democracia e o Estado de Direito. Mesmo assim, será julgado e condenado dentro da lei. Já em uma ditadura... só de mencionar democracia, sua vida estará em risco. Sem julgamento e sem lei.

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Galindo Hernandez

Pais de família sendo levados de suas casas sem crime, sem mandato, sem processo, sem advogado... E tem gente que tem "saudades" da ditadura e em pleno 2023 queria que os militares dessem um novo golpe, "com Bolsonaro no poder" e queriam o AI - 05 de volta. Eu me pergunto como pode ter gente assim tão i m b e c i l... ?!? De fato uma parcela do ser humano não deu certo...

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Rita Lira Roque

E a Dilma como se sabe não cometeu crime algum, todos reconhecem e seu erro foi tentar instalar a comissão nacional da verdade , daí mexeu nos calos de altas patentes que passaram a articular o golpe. Desta vez não haverá anistia porque AINDA ESTAMOS AQUI

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