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'Meu pai nunca mais conseguiu se encontrar: a tortura quebra a pessoa'

Kenia com o pai, Vital: ela só se reconheceu como uma pessoa afetada pela ditadura anos mais tarde - Arquivo pessoal Kenia com o pai, Vital: ela só se reconheceu como uma pessoa afetada pela ditadura anos mais tarde - Arquivo pessoal
Kenia com o pai, Vital: ela só se reconheceu como uma pessoa afetada pela ditadura anos mais tarde Imagem: Arquivo pessoal

Luciana Spacca

Colaboração para o UOL

29/01/2025 05h30

A tortura quebra a pessoa de um jeito que ela não morre, mas uma parte dela fica para sempre perdida naquilo. Meu pai nunca mais conseguiu se encontrar. Eu não entendia o que estava acontecendo, mas sabia que tinha alguma coisa errada.

A psicóloga Kenia Soares Maia, 51, só se reconheceu bem mais tarde como uma pessoa afetada pela ditadura militar no Brasil.

Já adulta, ela queria saber mais sobre a história do pai, torturado pelos militares. "Mas ninguém falava muito sobre isso na época", afirma.

"É como um segredo, algo que fica ali, como um núcleo duro e doloroso que ninguém quer falar, ninguém quer tocar."

Kenia é filha de Vital Cardoso de Souza, preso pela ditadura. "Quando eu nasci, meu pai já tinha saído da prisão. Ele foi torturado e ficou dois meses preso, em 1970."

A psicóloga é uma das pessoas que tiveram a infância sequestrada pela ditadura e contaram suas histórias ao UOL.

Na infância, a menina notava as lacunas e os segredos. "De vez em quando, meu pai sumia e eu não sabia onde ele estava. Ele marcava e não vinha, eu não sabia onde ele morava. Enquanto ele estava vivo, eu não sabia nada da história dele."

A mãe só contou a ela o que aconteceu com Vital quando Kenia já era adolescente.

Pai de Kenia foi preso e torturado em 1970 Imagem: Arquivo pessoal

Antes de ser preso, Vital era bancário. Filiado ao PCdoB (Partido Comunista do Brasil), foi acusado na ditadura de colaborar com grupos contrários aos militares.

Vital era tio de Jessie Jane, militante que participou do sequestro de um avião na expectativa de trocar os reféns pela liberdade de presos políticos —o parentesco o colocou na mira da ditadura.

"Tempos depois, eu soube que, além de ser torturado, meu pai viu a sobrinha e a irmã serem torturadas." Jessie ficou presa por 9 anos.

Depois que Vital foi solto, acabou demitido do emprego no banco. E "continuou ajudando os exilados", diz Kenia. Ele foi monitorado por muito tempo pelos militares.

"Ele foi vigiado por mais de dez anos. Tem documentos de acompanhamento dos passos do meu pai até 1983."

Vital não morreu na prisão, mas morreu jovem, aos 42 anos, após um um infarto. Kenia tinha só 11 anos. "[Ele foi vítima] De um empobrecimento, de uma precarização da vida, por conta da perseguição, da dor, da tortura", diz a filha.

'Fiquei com lacunas muito grandes'

Para Kenia, sua história é um retrato da "eficácia" da política de silenciamento sobre as vítimas da ditadura no Brasil. "Por muito tempo, não se falava sobre isso. Eu fui atrás, dei entrada no Arquivo Nacional para pegar os documentos do meu pai e entender tudo o que ocorreu."

Isso de não saber da história do meu pai e de ter convivido tão pouco com ele deixou lacunas muito grandes na minha vida. Quanta coisa aconteceu com meu pai e eu não soube? Eu não pude checar, não pude perguntar para ele como é que tinha sido aquilo. É tudo muito doloroso para mim.
Kenia Soares Maia

Kenia, o pai e a mãe: ela só foi saber o que de fato aconteceu com o pai na adolescência Imagem: Arquivo pessoal

Medo ainda persiste

Kenia conta que, anos após saber da história do pai, passou a temer um novo golpe militar no país.

"O medo que eu senti de ser presa, perseguida, torturada, morta... foi real. Não foi um medinho, foi um pavor."

Eu não sou uma pessoa com ansiedade, mas tive um gatilho de pânico durante um exame de ressonância magnética. Aquele som, ficar com os braços esticados, sem poder me mexer, me remeteu à tortura. Eu comecei a ter invasões de cenas, de imagens de tortura na minha cabeça, naquela máquina. Saí dali apavorada.
Kenia Soares Maia

A psicóloga hoje faz parte do coletivo Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça, formado por familiares de mortos, desaparecidos, torturados e perseguidos políticos durante a ditadura militar.

"Ninguém queria saber do meu pai, ninguém queria saber o que aconteceu com ele, o que aconteceu com a minha prima, com a minha tia, com os meus tios. A família carrega esse trauma também. Isso adoece a gente."

O coletivo é uma forma de as famílias se acolherem, falarem sobre isso e cobrarem seus direitos.

Para Kenia, o filme "Ainda Estou Aqui", indicado ao Oscar, é um reconhecimento das dores das famílias —mas não pode ser algo momentâneo.

O longa, que narra a história de Rubens Paiva, morto pelos militares, foi produzido a partir das memórias contadas no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, que, à época do desaparecimento do pai, também era apenas uma criança.

Nós ainda estamos aqui. Filhos, netos, parentes das pessoas que foram presas, torturadas e mortas durante a ditadura militar. A gente luta por memória, verdade e justiça.
Kenia Soares Maia

Entenda as leis e comissões

Lei da Anistia

  • Em 1979, o Brasil promulgou a Lei da Anistia. Além de conceder perdão aos presos e perseguidos políticos durante a ditadura, a lei também isentou de responsabilidade os agentes do Estado que cometeram crimes de tortura e assassinato no período.

Comissão sobre Mortos e Desaparecidos

  • A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos foi criada em 1995, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, com o objetivo de examinar os crimes cometidos durante a ditadura militar para localizar e reconhecer os desaparecidos e mortos no período.

Comissão Nacional da Verdade

  • A Comissão Nacional da Verdade foi instalada em 2012, no governo da presidente Dilma Rousseff, para apurar violações dos direitos humanos no Brasil entre 1946 e 1988. O relatório final entregue pela comissão apurou que ocorreram 434 mortes e desaparecimentos de pessoas vítimas da ditadura militar.

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