Dia em que Bolsonaro virou réu teve oração, cercadinho e marcha fúnebre
Jair Bolsonaro assistiu ao julgamento do STF do gabinete do filho e senador Flavio Bolsonaro (PL-RJ). Transformado em réu, reencarnou a versão mito: hostil com a imprensa e propagador de fake news.
O que aconteceu
O comportamento arredio foi oposto ao adotado no começo da manhã. Militar acostumado a madrugar, Bolsonaro chegou cedo e sereno na sede do PL, em Brasília.
O ex-presidente estava com aliados próximos, alguns que costuma chamar por apelidos.
Relacionadas
- Deputado Rodolfo Nogueira (PL-MS) ou "gordinho do Bolsonaro";
- O ex-ministro Gilson Machado ou "sanfoneiro do Bolsonaro";
- Senadora Damares Alves;
O UOL apurou que o clima era de tranquilidade e nenhuma esperança. Na noite anterior, o ex-presidente se despediu de seus aliados dizendo que o placar do julgamento do STF seria 5 a 0 pela abertura de ação penal por golpe de Estado.
Damares resolveu pedir intervenção divina. Abraçou Bolsonaro e orou. O ex-presidente se emocionou com a senadora rogando ajuda de Deus no julgamento.
A presença de Damares revela que Bolsonaro não deixou de fazer política nem no dia que virou réu. Ontem, ela sofreu um ataque do deputado Mário Frias (PL-SP). Ao encontrar a senadora, o ex-presidente sinalizou de qual lado está.
Traga para o lado de nós a pessoa certa, traga para o nosso lado o advogado, a estratégia certa.
Senadora Damares Alves
Bolsonaro 'conversou com a TV'
Bolsonaro sentou-se na ponta do sofá de couro do gabinete de Flávio. O lugar fica imediatamente abaixo de um grande quadro que mostra o filho sorrindo com a bandeira do Brasil ao fundo e o Cristo Redentor ao lado.
Posicionado bem na frente da TV, o ex-presidente prestou atenção na primeira pessoa a falar: Alexandre de Moraes. Ele parecia tranquilo na maior parte do tempo, de acordo com relatos feitos ao UOL.
Mas houve momentos em que Bolsonaro não segurou o descontentamento. Ele rebateu declarações de Moraes e rechaçou afirmações do ministro.
O descontentamento virou contrariedade com um vídeo do quebra-quebra de 8 de Janeiro. O ex-presidente disse que Moraes mostrou cenas de destruição, mas escondeu a parte da live de 30 de dezembro, quando ele falou que a luta não acabava e a direita voltaria ao poder.
Bolsonaro voltou a "conversar" com a TV. Afirmou que Moraes ignorou o vídeo em que ele pediu para os caminhoneiros desobstruírem as estradas, bloqueadas após a vitória de Lula em 2022.
Entre uma queixa e outra, houve muita conversa. A frequência de chegada de deputados e senadores aumentava conforme o julgamento se aproximava do final.
Prestes a ser enquadrado como réu pela Justiça, Bolsonaro saiu de frente da TV por causa de um assunto secundário. Recebeu o vereador de Salvador Cezar Leite (PL), autor de um projeto que multa em três salários mínimos quem se fantasiar de Cristo, freira ou outros temas religiosos no Carnaval da cidade.
Ao retornar o foco para o julgamento, o ex-presidente percebeu que decisões importantes precisavam ser tomadas. Vendo que os ministros do STF não fariam pausa para o almoço, Bolsonaro e os aliados pediram comida.
Acionaram o Dom Francisco, restaurante conceituado de Brasília. O estabelecimento tem o bacalhau como carro-chefe e diz possuir uma das "melhores cartas de vinho do Brasil".
Mas houve demora na entrega. Quando o pedido foi feito, era meio-dia e os ministros ainda votavam.
Na hora que a comida chegou, Bolsonaro já era réu. A espera foi tamanha que o julgamento acabara, o advogado do ex-presidente já havia concedido entrevista na saída do STF e chegara ao gabinete de Flávio para conversar com o cliente.
Antes de falar, Bolsonaro postou uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo sobre o ritmo do julgamento ser mais rápido que o do mensalão. Durante o seu governo, Bolsonaro costumava atacar o jornal, mas usou a credibilidade do jornalismo para tentar rebater o Judiciário.
Cercadinho ressuscita
Bolsonaro desceu para falar com a imprensa com o mau humor de quem sente fome. Encontrou um ambiente familiar semelhante ao da época em que foi presidente do Brasil. Um espaço cercado com jornalistas espremidos.
O ex-presidente prometeu uma coletiva, mas fazia um pronunciamento. Não demorou para mostrar que estava nervoso e, quando uma repórter tentou fazer uma pergunta, avisou que iria "estourar".
A condição de réu havia trazido o "mito" à tona. Ele repetiu informações distorcidas sobre urnas eletrônicas e investigações da Polícia Federal e atacou o Judiciário, o "sistema" e a esquerda.
As afirmações falsas dele não podiam ser rebatidas. Cada tentativa da imprensa em contestar as declarações era seguida de patadas.
Logo, Bolsonaro perderia a linha de raciocínio. Ele havia guardado a cola que preparou. Foi a hora de Flávio entrar em cena e assoprar argumentos no ouvido do pai, que falou por 50 minutos.
Postagens da esquerda brotavam aos milhares nas redes sociais. A deputada federal Duda Salabert (PDT-MG) foi conferir a coletiva ao vivo. Ela fez um vídeo do lado do cercadinho onde Bolsonaro se pronunciava. Ergueu o celular para Bolsonaro aparecer ao fundo e alfinetou. "Um mimimi ali atrás, virou réu e vai ser preso", disse.
Música de 2022 fecha o dia
No final da tarde, Bolsonaro entregou o que havia prometido: uma coletiva. Nada fora marcado, e ele resolveu falar na saída do Senado e sem convocar a imprensa.
Bolsonaro reafirmou sua candidatura a presidente. Ele não conseguiu explicar como vai recuperar os direitos políticos, mas se recusou a apontar um destinatário para seu capital político.
O ex-presidente repetiu as críticas ao STF e à esquerda. Nenhuma pergunta era evitada, mas respostas eram evasivas e a paciência estava dando sinais de falha.
De repente, a marcha fúnebre de Chopin foi ouvida. Bolsonaro foi espirituoso, riu de forma espontânea e ficou em silêncio escutando.
A imprensa emendou perguntas e ficou no vácuo. O ex-presidente parecia hipnotizado pelo som do trompete e ironizou os jornalistas: "Cuidado, pode ser um sinal".
A marcha fúnebre era tocada por um homem de boné vermelho. Fabiano Leitão, 45 anos, é assessor do PT e estava na calçada do estacionamento do Senado —Bolsonaro falava da entrada do prédio.
O ex-presidente riu outra vez quando Fabiano tocou uma música que viralizou na campanha de 2022. "Tá na hora do Jair já ir embora. Arruma suas malas. Dá no pé e vá-se embora." Bolsonaro teve paciência para ouvir a pergunta derradeira da imprensa. Descontente com o questionamento, encerrou a coletiva e foi para o carro.
O dia terminava bem diferente do que começou. A serenidade deu lugar a irritação do primeiro presidente da história tornado réu por tentativa de golpe de Estado.