50 mil vidas

Em pouco mais de três meses, foi esse o total de pais, mães, filhos e amigos levados pela covid-19 no Brasil. O UOL reuniu 50 relatos em homenagem a todos que perderam entes queridos nesta pandemia

Um almoço de família com 30 pessoas após uma viagem internacional. As celebrações de casamentos. A ida da comitiva presidencial aos EUA. Eventos comuns no cotidiano de um país se tornaram marcos da chegada do novo coronavírus ao Brasil e do início de milhares de tragédias.

Um empresário de 61 anos que retornava da Itália foi o primeiro diagnosticado. No final de março, a covid-19 já havia acometido pacientes em todos os estados e no Distrito Federal. Em 15 de abril, já vitimava pessoas no país todo.

Hoje, já são mais de 1 milhão de infectados e 50 mil pessoas que deixaram filhos, companheiros, pais e amigos. Com as restrições a velórios e enterros, muitos se foram sem poder receber homenagens.

O UOL conta 50 histórias de brasileiros e brasileiras que se foram sem poder dizer adeus dignamente.

Ligue o áudio para acompanhar os depoimentos em vídeo.

Com lágrimas nos olhos, Wesla Santos lembra a irmã Williane Maily Lins dos Santos, 30, que passou 24 horas esperando uma vaga e morreu em abril sem consegui-la em Vitória de Santo Antão, a 52 quilômetros do Recife. "Não poder velar, ver se era ela mesmo ali dentro daquele caixão, foi muito desesperador."

Em março, morreu a primeira pessoa para a covid-19: o porteiro aposentado Manoel Messias Freitas Filho, 62. Depois da tristeza de perder o irmão, o que entristece Maria da Graça, 53, é o choro da mãe por não ter podido ir ao enterro. Com doenças respiratórias, o pai e os outros três irmãos também faltaram à despedida em São Paulo.

Cheguei em casa depois do enterro do meu irmão e foi na televisão que vi a causa da morte. Foi uma falta de respeito e de humanidade."

Joana e Manoel começaram a namorar em 10 de setembro de 1983 - naquele dia, dançaram "Anjo", do Roupa Nova, em um baile na paróquia que frequentavam na adolescência. Desde então, nunca deixaram a data passar em branco. Ela sofreu um AVC no final de 2017. O marido assumiu os cuidados da esposa. Manoel de Jesus Miranda da Cruz tinha 53 anos, 37 deles ao lado de Joana.

O que dói é saber que ele cuidou tanto de mim e não pude cuidar dele. Foi sepultado em Macapá às 2h da manhã debaixo de chuva. Agora, ele vive em mim."

As notícias da covid-19 ainda pareciam distantes quando a doença pegou Geraldo Sávio, 49. Pescador esportivo, ele pensou estar resfriado após um evento com amigos em Nhamundá, no Amazonas, conta o amigo amigo Aldson Leão. À época, não houve qualquer orientação sobre aglomerações. Depois de quatro dias na UTI, não resistiu.

Era um cara o tempo todo animado, alto astral, apaixonado por pesca. Lutou sempre pela preservação dos rios e lagos de nosso estado

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Lauane Gentil, 40, ganhou um presente da vida há oito anos quando venceu um câncer de mama. Seus cabelos ainda não tinham crescido quando conheceu o marido, Ricardo Mateus Almeida, 39. Casaram-se e se mudaram para Macapá (AP), onde morreram com três dias de diferença. A irmã dela, Zamira Gentil, teve de enterrá-los.

Meu cunhado morreu sem saber que a esposa tinha morrido. Às 4h da manhã, não tinha ninguém no cemitério, só eu e o caixão."

"Meu filho não teve o velório que merecia", desabafa Elione Aciole da Costa, que perdeu o gastrólogo Matheus Aciole, 23, em Natal. "O sorriso era a marca registrada dele."

A saúde estava em ordem até Antônia Rodrigues, 75, viajar a Curitiba para uma festa de família. Enquanto pôde, atendia as ligações em vídeo da filha Gilda Cristina Rodrigues, 51, mas, em 14 de abril, sucumbiu. Não houve cerimônia, oração ao redor do caixão ou último olhar. "Isso machucou ainda mais."

Nas 30 horas passadas desde a morte de Maria Portelo de Lima, 61, o que a família fez foi chorar, rezar e esperar até cansar. Foi o tempo que demorou até Maria encontrar a última morada. A família teve de deixar a casa por conta do cheiro, e um vizinho chegou a se oferecer para enterrá-la à beira da estrada que liga Manaus a Roraima.

Quando chegaram para remover o corpo, eu disse: 'Poxa! E se fosse a família de vocês?' Ele entendeu e admitiu que agiram errado."

Felipe Naveca foi o primeiro cientista a sequenciar o novo coronavírus no Norte, mas não imaginava perder alguém tão próximo para o que pesquisa. Atleta - era professor de caratê mesmo aos 69 anos -, o amazonense Felipe Ribeiro Naveca não possuía nenhum fator de risco, com exceção da idade.

Não tivemos a oportunidade de uma despedida tradicional, não houve velório, somente orações. Ficou a dura lição que nossos heróis também se vão."

A jovem Nicole Lorrana Sussuarana Silva, 19, era apaixonada por esportes. Fazia balé desde criança, era atleta de voleibol em Porto Velho (RO) por incentivo da mãe, Núbia Lopes. A morte deixou todos estarrecidos. A homenagem veio em uma carreata com dezenas de carros partindo da frente da escola em que estudou até a sede do Ferroviário Atlético Clube. Enquanto o grupo rezava, balões foram soltos.

Vou juntar meus cacos toda vez que for necessário e fazer da memória da minha filha algo cintilante e de lição de vida, pois foi assim sua assistência aqui."

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Daliane Maiara Lima Sousa, 32, estava prestes a conquistar o sonho da casa própria no Pará, mas tudo foi interrompido. Sem cerimônia, o caixão saiu direto para o cemitério. "É muito doloroso, a gente não consegue encontrar palavras para descrever tamanha dor", diz o irmão, Pueblo Sousa.

Flávia Batista mora há pouco mais de um ano na Alemanha e teve de acompanhar de longe o triste desfecho da doença que acometeu a mãe, Elba Wanderley Chaves, 70, em Maceió. "Até hoje me pego pensando: 'Vou ligar pra mainha pra contar isso'. Só depois que a ficha cai que ela não está mais aqui."

Dalva Gomes quase desmaiou ao ir reconhecer o corpo da sogra, Rita de Alcântara, 80. Após a morte em abril, na Paraíba, foi colocada num saco, sem o direito de vestir a roupa preferida. Familiares só foram informados no dia seguinte, e da pior forma: o corpo foi trocado pelo de um homem. Três dias depois, chegou um caixão lacrado para o enterro. Familiares ficaram na porta, cantando hinos de que ela gostava. Não durou nem cinco minutos.

Ela não era mais um morto para a minha família: era minha sogra, era mãe, era avó, era a mulher mais amável que conheci."

Moradora de Paraisópolis, em São Paulo, a confeiteira Maria Jéssica Andrade, 27, não acreditava que o coronavírus chegaria à periferia. "Medo a gente tinha, mas jamais imaginava. A classe social mais baixa não tinha condições de viajar." Em 11 de abril, visitou a mãe, Zita Pereira Silva, 65, dois dias antes de ela ser hospitalizada no Hospital de Campanha do Pacaembu. Dias depois, o pai deu entrada lá, onde soube da triste notícia. Zita foi velada por 10 minutos e enterrada no cemitério da Vila Formosa.

Foi tão rápido que nem foi. Você para pra pensar que não é só com você, é com o mundo inteiro. Quantas famílias estão chorando?"

Foram felizes os quatro anos que Laercio Souza passou com o médico Gilmar Calasans Lima, 55. Quando ficou doente, teve de se afastar, mas mantinha contato em ligações de vídeo. Gilmar morreu dia 20 de abril em Ilhéus, no sul da Bahia, deixando Laercio sem chão.

Não sabia que seria tão dolorosa a sua partida. Não tive nem como dar o último adeus, foi tudo muito rápido e hoje convivo com este vazio dentro de mim. Ele foi retirado de mim como se tirassem o meu coração."

"Sonhei que eu era um dia um trovador / Dos velhos tempos que não voltam mais." Os versos do cearense Evaldo Gouveia, 91, lhe renderam a alcunha de ícone da Música Popular Brasileira e o apelido carinhoso pelo qual era conhecido. No dia 29 de maio, a voz do "Trovador" foi calada pela covid-19. Familiares e fãs não puderam se despedir, tampouco homenageá-lo como merecia. Os filhos e netos, presos num avião, não puderam ir ao enterro, conta a companheira, Liduína Lessa.

Não quero que ninguém passe o que passei, pois ele era muito companheiro e não pude vê-lo mais. Ele merecia um grande velório, mas infelizmente, aconteceu dessa forma. Cantamos cinco músicas dele enquanto o caixão era colocado no jazigo."

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Marcio Antonio Silva não conseguiu se despedir do filho, Hugo, 25, no meio de abril. Ganhou projeção nacional ao recolocar as cruzes em homenagens às vítimas em Copacabana em junho. "Era como se fosse a cruz do túmulo do meu filho, que não consegui velar. Será que eles não entendem a minha dor?"

O momento mais feliz da vida de Moisés Nekel, 43, com o irmão mais velho, foi em um hospital. Isaias Bogado Pinheiro, 63, havia sofrido um acidente de moto e passou 45 dias na UTI. Quando foi visitá-lo, Moisés foi recebido com um sorriso e sentiu que não ia perder o irmão. A vida seguiu e eles, vizinhos de porta em Garibaldi (RS), partilharam tudo, inclusive a luta contra a covid-19. Mas Isaias, desta vez, não voltou mais. Foi numa urna lacrada direto para o cemitério.

Foram a esposa dele e os filhos. Mais ninguém. Nós ficamos numa rua para ver carro da funerária passar. Na hora tu te sente humilhado, impotente. O pior sentimento que se pode ter."

Quando Carlinhos Sebastian, 43 anos, entrava em algum lugar, preenchia cada canto do ambiente com seu sorriso. Torcedor do São Paulo e ritmista de várias escolas de samba, ele uniu os dois amores ao ser mestre de bateria da Dragões da Real por sete carnavais. "Você via na expressão dele, no jeito de lidar, o ser humano maravilhoso que ele era", lembra Renato Remondini, o presidente da escola. As conversas sobre o que é ser músico na periferia, "um ato de resistência", marcaram para sempre Antônio Carlos.

Eu quero agradecê-lo por tudo que fez pela minha família. Ele foi importante para o meu crescimento como pessoa, essa é a verdade."

Maria Joana Prá, 84, foi a Florianópolis comemorar a entrada de um neto na faculdade. Na volta, dona Joaninha baixou no hospital. A neta, Vivian Prá Philippe, 34, acreditava que logo estariam juntas comendo os famosos cajuzinhos de Braço do Norte (SC), mas o telefone tocou em 14 de abril com a notícia de que ela não resistira à covid-19. O grupo de WhatsApp serviu para organizar os 10 familiares que puderam ir ao velório.

Chorei sozinha, de longe, sem chegar perto da capela em que ela foi enterrada."

Luiz Carlos Rodrigues, 44, era indígena da etnia Kokama e nasceu na mesma comunidade onde ensinava numa escola municipal, em Tabatinga (AM). Iria se formar em julho pela UFAM em licenciatura de ensino indígena e era orgulho na aldeia. O irmão, Eládio Kokama, não pôde se despedir.

Não fui ao enterro, no mesmo dia foram cinco óbitos na comunidade. Foram minha filha, meu filho e dois irmãos. Foi um enterro desumano para a gente, do hospital para o cemitério. Não é fácil isso."

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Eram raros os domingos em que Douglas Henrique Santos, 43 anos, de Palmas, não tinha um espeto de churrasco nas mãos e um pano de prato no ombro. A família mal teve tempo de se despedir: durou menos de 15 minutos. "O luto é parcelado", conta o filho Lucas.

Nilson Tupinambá da Silva era policial penal no Piauí. No desespero com o avanço da doença, tentou fugir para se despedir da família, mas desmaiou na porta da unidade de saúde. "O enterro foi tão rápido que nem deu tempo de irmos à porta do cemitério. Estamos chocados", diz o colega Kleiton Holanda.

Adenivalda Ferreira da Silva, 70 anos, criou cinco filhos na raça e cuidava dos netos para que estudassem. Aos 60, se alfabetizou para realizar o sonho de ler a Bíblia. A despedida quase foi perdida pelo filho José Moura. A irmã foi ao hospital conferir se era o corpo certo e não chegou a tempo. A roupa escolhida com carinho não saiu da sacola. José deixou as pessoas no cemitério, em São Paulo, e foi estacionar. Quase perdeu o enterro.

Quando cheguei já estavam enterrando. Foi questão de segundos. Quando você vê terra sendo jogada em cima de um ente teu é diferente. É muito triste."

O enfermeiro Eudes Pinheiro Ferreira, 49, foi infectado ao atuar na linha de frente da emergência de trauma em Rio Branco (AC). Na saída do caixão lacrado, colegas deram uma volta no quarteirão do hospital acompanhando o carro da funerária. Eles o homenagearam com salvas de palmas e sirenes de ambulância ligadas. A prima, Ronnymar Ferreira, lamenta não ter podido acompanhar o enterro.

Está sendo muito difícil lidar com a perda dele e pior ainda é não ter podido homenageá-lo à altura. Dói muito."

Após uma dura luta, o "gordin", como Fláverton Félix Queiroz dos Santos, 35, era chamado, foi sorrir no céu. O cabo do Corpo de Bombeiros Militar do Ceará é lembrado pela alegria e pelas vidas que salvou. "Viveu intensamente sua vida de bombeiro salvando e ajudando pessoas, sempre bem humorado e brincalhão", diz o companheiro de farda Paiva Júnior.

O médico Ricardo Pereira Passos, 43, arriscou a própria vida para salvar pacientes em Campina Grande (PB). Além de doutor, tinha sensibilidade para a poesia: "Esse não é um tom de despedida / Não é um sentimentalismo barato / Simplesmente são momentos / Que sempre devem ser recordados", escreveu antes de morrer.

"Vocês estão botando a vida de vocês e de outras pessoas em risco." Foi essa a mensagem passada pela auxiliar de enfermagem fluminense Daniela Costa cerca de uma semana antes de morrer.

Conhecido pelos trabalhos sociais, o padre italiano Bruno Sechi, 80, auxiliou na criação do ECA. Radicado no Pará há 40 anos, morreu sozinho em casa. "Que tempo vivemos! Parece que a morte deixou de ser entrega amorosa de todo o ser ao Deus criador, para ficar apenas a matéria posta, de qualquer jeito, na terra", lamenta o padre Ronaldo Menezes.

Viaturas da Polícia Militar do Pará acompanharam o carro que levava o corpo do capitão Raynério da Silva Costa. A mãe se despediu da varanda de casa. "Capitão Raynério me auxiliou em diversas missões delicadas, onde mostrou toda sua serenidade, eficiência e segurança em seus conhecimentos", destaca o coronel reformado da PM, Hélcio Tomaso.

Era filha única e mãe de um único filho, de sete anos. A professora Theresa Bernadette Morenne Persaud, dedicou a vida a estudar e educar. Morreu vítima da covid-19 aos 35 anos em Boa Vista (RR). A dor de não poder se despedir acompanhará a amiga Ana Vanessa Guimarães.

Que doença é essa que leva pessoas sem nem ao menos deixar que a gente se despeça? Não se pode ter contato no hospital, não se pode receber o caixão. É uma dor sem limites."

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Sandro Alvarenga, 51, nasceu, cresceu e sempre trabalhou como taxista no bairro Andorinhas, em Vitória, às margens do Canal de Comburi. Sua família ergueu as primeiras casas no bairro, antes um manguezal. O irmão relembra a linda homenagem feita por vizinhos e colegas taxistas, que formaram uma carreata para acompanhá-lo. Foi até notícia na televisão.

Era uma pessoa muito querida e de muita fé, evangélico. A casa dele fica a 5 km do cemitério. O veículo da funerária já estava chegando lá e ainda tinha carro no bairro."

Casada há sete anos, Juliane Severo, 30, não conseguiu se despedir do marido, Rafael Rodrigues, 31. Ele passou cerca de dez dias no hospital em Goiás. Juliane e a filha nunca mais o viram. "Fui acordada de madrugada. De manhã, já falaram que o corpo foi para o cemitério. Recebi o atestado de óbito pelo correio."

O ex-procurador Alfredo Gaspar de Mendonça ainda estava hospitalizado com a covid-19 e não conseguiu se despedir de seu pai, o advogado e presidente do Instituto Arnon de Mello Carlos Alberto Mendonça, 82, que faleceu em 13 de maio, em Maceió. Em suas palavras, a doença é uma tragédia ainda maior por impedir o momento fundamental da despedida, que marca o início do luto.

Meu pai. Meu herói. Minha referência. Meu conselheiro. Meu melhor amigo. Como é difícil conviver com este vazio no coração. Descanse em paz. Para sempre te amarei com todas as minhas forças."

Dono de um bar, Francisco Dantas, atendia em Teresina pelo apelido de Ceará, apesar de ter nascido no interior do Piauí. Ficou famoso como o "rei da panelada", prato típico preparado com vísceras de boi. O filho, Jackson Dantas, conta que veículos de 20 familiares acompanharam o carro da funerária até cemitério. Do enterro, seguiram para uma praça para homenageá-lo com rojões e orações.

Meu pai mesmo dizia: 'Vou morrer e vocês todos saibam que aproveitei minha vida como queria aproveitar, não precisa nem chorar'. Mas não tem como, né?"

As paixões de Suelen Silva Ferreira, 35, eram a arte, bolos e doces, os alunos, o filho Guilherme e a mãe Benedita. Em breve, Giulia chegaria para se somar a esse time, já que Suelen estava grávida de 8 meses. Foram nove dias internadas no Maranhão. Em 26 de abril, a bebê faleceu. Dois dias depois, foi-se a mãe, conta a irmã Lúcia Ferreira.

Parecia que a cada dia perdíamos um pedaço de nós. O enterro foi de dor por não termos os amigos e familiares. Fizemos homenagens nas redes sociais. Suelen, você vai ficar para sempre em nossos corações."

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Raimundo Alexandrino de Souza Lima, 79, deixou de barco a vela o município de Cândido Mendes, na juventude, para prestar vestibular para Medicina na capital São Luís. Pioneiro em cirurgia pediátrica no Maranhão, lecionou por 35 anos na UFMA. Para além da dor da perda, dói no irmão, Otílio, o modo como ele se foi.

Não quero que outras pessoas passem pela dor de ter um ente querido sozinho, isolado em um leito, lutando para sobreviver por conta de um vírus maldito que ceifou seus pulmões, lhe tirando o oxigênio e sua imensa alegria."

Aida Rodrigues Bragança, 71 anos, fazia tudo o que fosse necessário para colocar um sorriso no rosto de alguém. Religiosa e perseverante, reservava os domingos para a igreja. "Minha vó entendia o que é caridade, e ajudava todo mundo que via passando necessidade. Eu com certeza aprendi a amar mais as pessoas graças a ela", lembra a neta Letícia, que não pôde ir ao velório em Minas Gerais.

Álvaro Jardins, 26, iria se formar em enfermagem esse ano. Em Ipiaú (BA), trabalhava na área administrativa do Hospital Geral. Nas palavras do amigo e ex-diretor do hospital, Alex Miranda, fez um belo trabalho onde trabalhava no núcleo de regulação, gestão de leitos e internamento.

Foi uma vida dedicada à humanidade, à caridade e de assistência aos mais carentes."

Douglas Santos, 32, lutava contra um câncer no pâncreas há quatro anos. Com dores, foi internado no meio de abril no Instituto do Câncer, em São Paulo. Lá, a mãe Antonia Isidoro suspeita, contraiu o vírus. Sem aviso, foi transferido para o Hospital das Clínicas. Como estava bem, conversava por vídeo direto. A falta de ar começou a aumentar muito e ele disse: 'Mãe, eu vou morrer'." Faleceu dois dias depois.

Ele tinha três filhos. Ninguém pode se despedir. Só o vi por uma janelinha para reconhecer o corpo. Não tive o direito de pôr uma roupa no meu filho."

Luzia Maria dos Santos tinha várias formas de ser chamada: "Mainha, mamãe, voinha, filha, irmã, tia Luzia, Lulu", lembra a sobrinha Jamille Rosely dos Santos. Moradora de Sergipe, era trabalhadora, inspiração de vida e porto seguro dos que a cercavam. No mesmo dia em que Luzia se foi, 1º de junho, morreu também o pai dela, José Francisco dos Santos, o Zeca. A família se dividiu para acompanhar o restrito sepultamento.

O destino fez com que a partida de José acontecesse simultaneamente à de quem se dedicou a cuidar dele, a sua filha Luzia. Ao senhor, a nossa gratidão e a certeza de que seu exemplo vale mais que mil palavras."

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Maria Creuza da Silva, 89, era a funcionária mais antiga em atividade da primeira faculdade de odontologia de Caruaru (PE). Era aposentada por idade, mas nunca quis abandonar a faculdade. Era apaixonada pelo trabalho dela. O neto, Diogo Tabosa, conta que ela nunca se atrasou ao trabalho.

É muito triste, não só para os familiares, mas pelos amigos que tinha na faculdade e na igreja e que não puderam se despedir dela."

O poeta Antonio Thadeu Wojciechowski, 69 anos, ainda chora quando fala do pai. Tenta se agarrar ao consolo de saber que Thadeu Wojciechowski Filho viveu seus 94 anos pleno de amor à vida, até morrer no Paraná. "É difícil aceitar. A última visão que tenho é de mim dando comida na boca dele."

Quando a gaúcha Gleci Baum Dias, 58, procurou o posto de saúde, em março, nenhuma morte havia ocorrido no país. O coronavírus foi vencido, mas ela nunca mais acordou. A família ficou no portão do cemitério: apenas seis poderiam entrar. "Eu, como filho, entrei, mas é uma dor enorme ver o caixão lacrado", diz Jader.

Carivaldina Costa, a Dona Uia, era uma reconhecida militante quilombola. Os companheiros de luta, porém, ficaram de fora de seu enterro. Só eram permitidas quatro pessoas da família, e de longe. Foi tudo fechado. É isso que machuca a sobrinha Rejane de Oliveira.

Ela lutava pela titulação do território de Rasa [em Armação dos Búzios-RJ], contra o racismo e incentivou comunidades da região a lutar pelo território também."

Para Igor Castro, a covid-19 foi dura em dobro: levou sua irmã, Iza Castro, e seu pai Edvaldo Silva, que moravam juntos na mesma casa em Arapiraca (AL). O adeus ficou contido pela limitação no velório.

Minha irmã foi a pessoa mais caridosa que conheci na vida, e meu pai foi o cara mais íntegro. A gente tenta se apegar em Deus, mas está sendo bem duro."

Alan Patrick, 38, e Regina Leonoro, sua "mãe de coração", tiveram uma história de amor e dedicação ao próximo. Ela o conheceu quando era voluntária no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Ele tinha dez anos e vivia com a tia. Desde então, passaram a morar parte do tempo juntos e integravam a ONG Aleia. Técnico em enfermagem no último ano para se tornar enfermeiro, Alan se foi em 14 de abril.

Eu estava no sepultamento e recebi um amigo dele falando que não tinha equipamento [de proteção] para os profissionais. Vi que a situação era muito ruim também em muitas unidades. Aí, comecei a doar esses materiais."

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Texto: Aliny Gama, Arthur Sandes, Carlos Madeiro, Felipe Pereira, Gabriela Sá Pessoa e Lucas Borges Teixeira. Do UOL, em São Paulo, e, colaboração para o UOL, em São Paulo e em Maceió

Edição: Clarice Cardoso, do UOL, em São Paulo. Colaboraram Carlos Padeiro e Lígia Nogueira, colaboração para o UOL

Design: Juliana Caro

Motion design: Santhiago Botture e Leonardo Rodrigues

Direção de arte: René Cardillo

Produção de vídeo: Caroline Monteiro

Edição de vídeo: Raquel Arriola

Rede sociais: Aline Rocha, Bruna Baddini e Laís Montagnana

Fotos: Acervo Pessoal

Publicado em 20 de junho de 2020.