Baixas na Saúde

Após 47 mortes e 5.700 afastamentos, profissionais de saúde lidam com riscos e falta de testes

Herculano Barreto Filho Do UOL, no Rio Herculano Barreto Filho/UOL

Na linha de frente no combate à pandemia, profissionais da área de saúde lidam com riscos de contágio e falta de testagem para a covid-19, doença provocada pelo coronavírus. Já foram registrados ao menos 47 óbitos e 5.766 afastamentos nos hospitais do país relacionados à propagação do vírus no ambiente hospitalar, segundo dados do Cofen (Conselho Federal de Enfermagem) atualizados na manhã de hoje (23).

Nas últimas 24 horas, foram confirmadas novas seis mortes por covid-19 ou por suspeita da doença— quatro no Rio, uma em São Paulo e outra no Amapá. Levantamento feito pelo UOL com base nos registros aponta que 58% dos enfermeiros e técnicos de enfermagem afastados atuam em São Paulo e Rio. Segundo o Ministério da Saúde, 2.906 pessoas morreram por causa da doença —55,9% dos casos ocorreram no eixo Rio-São Paulo.

São Paulo lidera o ranking, com 1.818 afastamentos. Com 1.520 enfermeiros e técnicos de enfermagem com licença médica, o Rio aparece em segundo lugar na lista, seguido por Santa Catarina (438), Minas Gerais (321) e Rio Grande do Sul (251). O dado foi obtido com a soma de profissionais de saúde afastados com suspeita de covid-19, casos confirmados e internados.

O Cofen contabiliza 47 mortes de enfermeiros e técnicos de enfermagem no país —o número envolve casos confirmados e suspeitos da doença. Com 16 óbitos, São Paulo é o estado com o maior número de casos. No Rio, foram confirmadas 12 mortes.

Os profissionais de saúde registram no conselho reclamações anônimas principalmente por escassez de testagem para a covid-19, risco de contaminação no ambiente de trabalho e falta de EPIs (equipamentos de proteção individual). Até ontem (22) à noite, a entidade já tinha registrado 4.806 denúncias.

O fantasma da covid-19 na família de Jorge

Uma família formada por profissionais de saúde sofre no Rio com os efeitos devastadores da doença de rápido contágio. O técnico de enfermagem Jorge Alexandre de Oliveira Andrade, que morreu no último dia 13 em decorrência da covid-19, completaria 46 anos ontem. Ainda em luto, a família agora vê a história se repetir.

Uma das irmãs de Jorge, a enfermeira Catia Maria de Oliveira Andrade, 53, também faz parte da lista de profissionais de saúde afastados do serviço. Com dores no corpo e tosse, ela foi afastada na última sexta-feira (17) por duas semanas. Outras três pessoas na família que tiveram contato com Jorge também tiveram sintomas compatíveis com a covid-19.

Irmã internada com suspeita de covid

O caso mais grave foi o da dona de casa Luciane de Oliveira Andrade, 37, outra irmã do técnico de enfermagem. Ela tem obesidade e hipertensão, mesmos problemas de saúde do irmão, que trabalhava no setor para covid-19 no Hospital Municipal Lourenço Jorge, a maior emergência da zona oeste do Rio. E, desde a semana passada, Luciane apresenta os mesmos sintomas, como tosse e dores no peito.

Na segunda (20), depois de ficar um dia internada na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) de Campo Grande, na zona oeste carioca, ela foi transferida para um hospital em Volta Redonda (RJ), a 130 km da capital fluminense. A família ainda não sabe se ela foi infectada pelo mesmo vírus que matou o seu irmão.

Ela está internada longe da família e não fizeram o teste até agora. Não tivemos uma assistência adequada do sistema de saúde. O próprio estado deveria procurar as famílias dos profissionais de saúde que morreram [por causa da covid-19]. Mas ninguém nos procurou. Estamos nos sentindo abandonados

Catia Maria de Oliveira Andrade, enfermeira e irmã de Jorge

Herculano Barreto Filho Herculano Barreto Filho

'Não tive nenhum suporte', diz colega de Jorge

A técnica de enfermagem Elaine Sales, ex-colega de Jorge Alexandre de Oliveira Andrade no Hospital Lourenço Jorge, disse, em entrevista ao UOL, que tinha medo de morrer de covid. Agora, já com os sintomas da doença e afastada do trabalho, ela precisou recorrer ao plano de saúde para fazer a testagem.

No sábado (18), ela começou a sentir dores no corpo. No dia seguinte, procurou por atendimento médico. "Quando cheguei lá, a minha pressão estava muito alta. Fiz o teste. Mas o resultado só deve sair amanhã [hoje]", conta.

Assim como a irmã de Jorge, ela também reclama da falta de assistência aos profissionais de saúde. "Não tive nenhum suporte. Infelizmente, é cada um por si", reclama.

Herculano Barreto Filho/UOL Herculano Barreto Filho/UOL

'É um descaso enorme', diz enfermeira à espera de teste

Com sintomas compatíveis com a covid-19, a enfermeira Karen Strong Ferreira Teixeira, 51, esperou quase duas horas para fazer a testagem ontem (22), na Clínica da Família Maicon Siqueira, na Barra da Tijuca.

Enquanto esperava por atendimento, ela encaminhou um vídeo ao UOL para relatar a situação. Segundo ela, havia ao menos outros cinco profissionais de saúde com suspeita de covid-19 à espera por atendimento no local.

"É um descaso enorme. Ninguém resolve. Estou me sentindo muito mal, com dores no corpo, tosse e falta de ar. Mas ninguém toma uma providência", desabafou.

Desde sábado (18), Karen passou a sentir perda do olfato, febre e falta de ar. Na segunda-feira (20), foi afastada por duas semanas das suas funções no Hospital Municipal Miguel Couto, no Leblon, zona sul do Rio, após ligar para a Secretaria Municipal de Saúde.

O que dizem a prefeitura e o governo do RJ

Em nota, a Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro disse que há 1.043 profissionais de saúde da rede afastados por suspeita ou por confirmação de coronavírus. Segundo o governo estadual, o número representa 5,4% dos profissionais que atuam nas emergências e UPAs estaduais.

O governo disse ter distribuído 5.000 máscaras do tipo Face Shield para hospitais e UPAs no começo do mês. A lista incluía 17 unidades hospitalares e 30 UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) no estado do Rio.

Já a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro disse monitorar os casos desde o começo da pandemia e que irá divulgar um levantamento nos próximos dias. A pasta esclarece que as investigações de mortes são feitas nas unidades em que o paciente faleceu.

Informou ainda que irá criar centros de testagens para profissionais da rede. A resolução consta no Diário Oficial do Município da última sexta-feira (17). "Sugerimos que as dez Coordenadorias Gerais de Atenção Primária (CAP) implementem, no menor espaço temporal possível, centros de testagem covid-19 para profissionais de saúde em seus respectivos territórios."

Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, foi adquirida uma quantidade maior de EPIs (equipamentos de proteção individual). A Prefeitura do Rio também informou que comprou mais de 3 milhões de máscaras, óculos e itens de proteção individual após negociação com o governo federal. Também foram adquiridas outras 1,1 milhão de máscaras N-95, usadas por profissionais de saúde e mais eficazes na prevenção, e 460 mil capotes.

Silvia, 70 anos e com diabetes: afastamento por iniciativa própria

Há um mês, em meio às férias, a técnica de enfermagem Silvia de Mendonça Dutra, 70, foi chamada às pressas para reforçar a equipe do Hospital Federal da Lagoa, na zona sul carioca, em um comunicado enviado a todos os profissionais da unidade de saúde ainda no começo da pandemia.

No grupo de risco em razão da idade avançada, a profissional também tem um histórico de doenças que agravam a sua situação. Ela convive com a diabetes há 20 anos, tem um dos pulmões comprometidos por causa de tuberculose e toma medicamentos controlados de uso contínuo.

Silvia contudo só foi afastada no começo deste mês —depois de trabalhar em três plantões— porque informou a sua situação para a área de Recursos Humanos da unidade e pediu para abandonar a arriscada rotina no ambiente hospitalar por causa do risco de contágio por coronavírus.

Ela também enfrentou riscos desnecessários ao pegar ônibus e trem lotados para ir de casa ao trabalho antes do afastamento.

Apesar de a sua situação ter sido resolvida, ela teme por outras colegas com idade avançada, que continuam trabalhando porque precisam do dinheiro extra pago nos plantões médicos.

Elas [outras profissionais de saúde] podem estar morrendo, mas não pedem licença médica porque precisam do dinheiro dos plantões. Eu decidi priorizar a minha saúde. Se dependesse do hospital, eu continuaria trabalhando. Não estão dispensando ninguém

Silvia de Mendonça Dutra, técnica de enfermagem

Herculano Barreto Filho/UOL Herculano Barreto Filho/UOL

Apesar de estar afastada, Silvia se preocupa com a situação dos profissionais de saúde em situação de risco que continuam na linha de frente das unidades hospitalares. "Me sinto mal e impotente. Infelizmente, vamos ter outros colegas que vão se contaminar. Só me resta pedir a Deus para que fiquem bem."

Silvia só sai da casa onde mora em Guadalupe, zona norte do Rio, para fazer compras. Uma vez por semana, atravessa a passarela da avenida Brasil para ir ao mercado.

Na volta, quando chega no quintal, já higieniza os sapatos no tanque, com um galão com água, sabão e cloro. Ela diz lavar até mesmo as embalagens dos produtos antes passar pela porta. Com os medicamentos controlados fixados na geladeira e o jaleco guardado no armário, ela busca proteção dentro de casa, sem previsão para voltar a trabalhar.

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