Amor sem limites

O sofrimento e o êxtase dos romeiros para chegar perto da santa no Círio de Nazaré, a maior procissão do país

Felipe Pereira* Do UOL, em Belém Jader Paes/Ag.Pará

A falta de cabelo facilita perceber o suor se formando na cabeça de João Miranda, 54. E ele vai ficar ensopado. O esforço de fazer 3,6 quilômetros de joelhos é descomunal —a distância é maior que a extensão da avenida Paulista, em São Paulo. Seu João está tão compenetrado que não reage à dor e aos aplausos. O foco é essencial. São seis horas engatinhando. Ele sabe que o joelho vai chegar esfolado e não está nem aí.

O Círio de Nazaré, em Belém, é isso. Gente muito devota fazendo sacrifícios em nome de Nossa Senhora de Nazaré. O ápice da entrega à santa é segurar na corda, um feito que não é para todos. Tem tanta gente que parece que os 2 milhões de participantes da procissão neste domingo estão ao lado do pedaço de sisal da grossura de um antebraço.

Dizer que a corda é igual a ônibus lotado é um absoluto eufemismo. A sensação está mais para aquela hora em que você está num show ou bloco de Carnaval lotado e estoura uma briga. Um clarão abre esmagando todo mundo ao redor. Mas na corda este sentimento de esmagamento não dura um instante. São cinco horas de sufoco.

O ritual começa na noite anterior. Djonata de Jesus, 27, chegou às 21h de sábado para garantir lugar na corda. Ele tem um terço ao redor da cabeça. "É porque a virgem está sempre na minha mente me guiando." Quem chega mais tarde se amontoa junto a quem já estava lá. O dia amanhece com milhares de devotos forçando para chegar à corda. Antes mesmo de sair, a corda já é um cabo de guerra.

Tanto sacrifício tem uma razão. O povo acredita que a mãe de Jesus Cristo enviou uma imagem para um igarapé de Belém no ano de 1700. Aqueles que rezarem e adorarem a santa terão em Nossa Senhora de Nazaré uma advogada de seus pedidos junto a Deus. Quem acredita que recebeu muito dela encara a corda como uma maneira de mostrar gratidão.

Felipe Pereira Felipe Pereira

Viva Nazinha

A corda é conectada à berlinda, uma espécie de altar, que leva a imagem de Nazinha (os paraenses têm diferentes apelidos carinhosos para a santa, coisas da intimidade de uma vida). As pessoas gritam "viva" logo que a procissão começa. De repente, uma força empurra todo mundo para esquerda. Os devotos abrem as pernas para ampliar a base e se inclinam fazendo força no sentido contrário com todos os músculos do corpo.

Quem está nas laterais corre para acudir. Os promesseiros que estão na extremidade ficam de frente para o povo e abrem os braços para aumentar a área. Todos empurram esta pessoa e evitam que a corda faça curvas. A cada minuto o Círio parece aquele empurra-empurra do futebol americano.

E há uma regra para participar da corda: precisa estar descalço. Os pés chegam dilacerados e seria ainda pior se os devotos usassem tênis. Os promesseiros também precisam estar dispostos ao sufoco. Eles vão colados uns aos outros. O rosto fica sobre o ombro de quem está a frente. Baixinhos se resignam e aceitam enfiar o nariz nas costas de um desconhecido.

Jader Paes/Ag.Pará Jader Paes/Ag.Pará

Tudo para ficar na corda

As pessoas que seguem a procissão na corda quase nunca são estreantes. Anderson Otony, 23, foi pela primeira vez em 2015, ano em que fez promessa para a mãe sobreviver a um câncer de mama. "Confiar em Nazinha vale a pena. O que eu faço aqui não é nada perto do que ela fez por mim e minha família."

Quem não conseguiu vaga na corda tenta furar a coluna de promesseiros. O candidato enfia o braço entre duas pessoas que por nada soltarão a corda. Desconhecidos empurram o sujeito para o meio do bolo. São várias investidas. Mas a física ensina que dois corpos não ocupam o mesmo espaço. Quase nunca dá certo.

As oportunidades de sucesso acontecem quando alguém passa mal. Corpos tão colados no calor da Amazônia cobram o seu preço. Na corda, há vários gritos de "abre, abre", código para dizer que um promesseiro passou mal. A Cruz Vermelha tem 14 mil voluntários que correm para ajudar. Eles fazem um círculo evitando que a pessoa seja pisoteada, colocam numa maca e levantam o paciente acima da altura de suas cabeças.

A ajuda também vem de pessoas que doam água. Ainda de madrugada elas descarregam caminhões e caminhonetes. Paredes com fardos de copos e garrafas são erguidas e pela manhã o povo atira água aos promesseiros. A admiração por estas pessoas é grande. Todos ali amam Nazarezinha, e aqueles homens e mulheres levaram sua fé ao extremo de aguentar desconforto, perder unhas, deixar o pé em carne viva e a mão assada.

Jader Paes/Ag.Pará Jader Paes/Ag.Pará

Banquete em família

Terminada a procissão, as pessoas da corda sentem uma espécie de transe. A dor é grande, há promesseiro sangrando, mancando e derretendo de calor. Antônio Denis Mesquita, 38, chora. Ele se diz esgotado, mas ao mesmo tempo cheio de energia boa. É a sensação das celebrações coletivas. Existe também nos estádios de futebol, nos shows. Mas não com a união de 2 milhões de almas.

É neste espírito que as famílias se reúnem para um enorme banquete com pratos típicos do Círio. Tem pato no tucupi e maniçoba, uma raiz venenosa que precisa ser cozida por uma semana para deixar de ser fatal.

Círio é o Natal do Pará

Esta é outra face da procissão. Além de reunir 2 milhões de pessoas no segundo domingo de outubro, ela mantém laços afetivos. Seu João percorreu 3,6 quilômetros de joelhos porque fez promessa para a filha Janaina sobreviver a um câncer no cérebro. Ele cumpre sua palavra com ajuda de outros dois filhos que levam papelões que são colocados no caminho. Assim que seu João passa por um papelão, ele é levantado e levado para frente novamente, numa coreografia de dor e superação.

Michel Quintas, 31, saiu de Macapá para participar do Círio. Os pais viajaram do interior do Pará e todos se encontraram na casa de um irmão dele. É a única vez do ano que a família inteira se reúne: Natal cada um passa no seu canto. Essa importância que Nossa Senhora de Nazaré adquiriu para os paraenses é coisa que está no DNA local.

Os filhos são levados para o Círio ainda criança nos ombros dos pais. Escutam histórias de graças alcançadas e que a mesma mulher que cuidou de Jesus desde quando Ele não sabia falar nem caminhar está olhando por seus devotos no céu.

Felipe Pereira Felipe Pereira

Trocas de experiências

Adaílton Albuquerque tem 29 anos, a pele bronzeada e o couro duro nas mãos de quem trabalha na terra. Plantar macaxeira, milho e arroz são o sustento do morador de Cametá, interior do Pará. Ele se dá folga em outubro para louvar a santa. Caminha 246 quilômetros até a capital do estado numa viagem que começa no domingo e termina na sexta. A parada final é a Basílica de Nossa Senhora de Nazaré.

Colado ao lugar funciona a Casa de Plácido, nome em homenagem ao caboclo que encontrou a imagem de Nazarezinha num igarapé onde hoje existe a igreja. A casa conta com 1.100 voluntários que trabalham lavando os pés dos romeiros que vieram a pé. A diarista Lúcia Araújo, 50, era uma das pessoas dando expediente em uma cadeira diante de um tanque colocado no chão. Ela está equipada de mangueira e um kit com esponjas e sabão quando o peregrino senta.

Lúcia passa a esponja entre os dedos de Adaílton com a sujeira acumulada em seis dias de caminhada. Ela joga mais sabão e massageia o desconhecido. O tratamento de podologia dura oito minutos. "Eu recebo toda a energia e a fé que um devoto carrega com ele depois de percorrer quilômetros e mais quilômetros para ver Nazinha. É emocionante. Choro lavando os pés deles."

Adaílton também acredita que sai ganhando com a interação. "É muita bondade em fazer isso pela gente. Também é demonstração de humildade fazer isso pelos outros. E ver a bondade e humildade serve de exemplo para eu ser um cristão melhor."

Marcelo Seabra/Ag.Pará Marcelo Seabra/Ag.Pará

Coração de mãe

O Círio também se vale de aceitar diferentes formas de mostrar amor à Virgem. Há romaria de motos, carros, ciclistas, corredores, crianças e a fluvial. A romaria pelas águas acontece no sábado e junta navios da Marinha, iates, lanchas e singelos barcos de pesca.

Olhando de longe, parece uma esquadra gigante tomando conta da Baía do Guajará e seus quatro quilômetros de largura. Quando passa em frente a empresas com sede na margem do rio, a procissão é saudada com salvas de foguetes. São tantos fogos de artifício que a coluna de fumaça dificulta enxergar os três helicópteros da Marinha que acompanham as embarcações.

No ponto final, 18 homens da Marinha estão com uniformes de gala em um branco impecável esperando a santa. Uma sirene é disparada indicando a chegada da imagem. Todos espalmam as duas mãos para o céu. Não há discursos ou sermões, mas a comoção é generalizada.

Não é planejamento, é intuição

É assim na romaria das motos, das bicicletas, dos carros, das crianças e a pé. O resultado de tantas formas de procissão é não criar afastamento entre povo e a santa. E nada é planejado. Acontece de maneira intuitiva.

Antônio Souza é diretor de Procissão do Círio e explica que diferentes grupos pedem para serem incluídos na programação. Por saber que os paraenses amam Nossa Senhora de Nazaré, houve a incorporação de novas romarias.

"As pessoas querem manifestar devoção a seu jeito. E o Círio abraça os fiéis como a santa abraçaria. Há diferentes formas de demonstrar amor a Nazinha e a Jesus."

Marcelo Seabra/Ag.Pará Marcelo Seabra/Ag.Pará

Festa da Amazônia

Belém é uma cidade de forte influência portuguesa que deixou herança de fé fervorosa. Num país do tamanho da Europa Ocidental, a capital do Pará ficou um tanto isolada do restante do Brasil e desenvolveu seus costumes. O Círio é a maneira dos paraenses mostrarem sua devoção. Além de religião, a maior procissão nacional é um exercício de identidade.

O seu jeito de ser religioso tem bandos de papagaio levantando voo das mangueiras durante missas a céu aberto e cantos sacros falando de açaí. No Círio, pessoas carregam imagens de barcos, pernas, casas, livros e capacetes, demonstrando como foram ajudadas por Nazaré.

O almoço junta famílias para comer pratos típicos. Laços de afeto são criados e renovados compartilhando devoção por Nazarezinha. O Círio faz gente voltar a Belém do Sudeste e Nordeste de avião para encontrar o parente que mora na beira de um rio distante três dias de barco da cidade.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional chama de patrimônio cultural. A academia classifica como identidade cultural. As revistas metidas a modernetes falam em life style. O povo que estava no domingo em Belém define o Círio como o exercício de ser paraense.

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