30 pesos? São 30 anos!

Em uma semana, imagem do Chile foi de 'modelo' a 'lugar onde há algo errado'. Chilenos contam o que aconteceu

Marcos Moreno Colaboração para o UOL Rodrigo Garrido/Reuters

Em 7 de outubro, o presidente do Chile, Sebastian Piñera, afirmou em um programa de TV nacional que "em meio a uma America Latina convulsionada, o Chile é um verdadeiro oásis, com uma democracia estável".

Em menos de 15 dias, o diagnóstico era o oposto: "Estamos em guerra contra um inimigo poderoso, implacável, que não respeita nada nem ninguém e está disposto a usar a violência e delinquência sem nenhum limite", disse o presidente em 20 de outubro à frente de uma república em estado de emergência e com toque de recolher decretado em grande parte do país.

O que aconteceu para que os chilenos, o presidente chileno e o mundo tenham mudado sua visão sobre um país considerado próspero e até modelo para a região?

O UOL ouviu pessoas que moram no país e participaram direta ou indiretamente dos protestos e reconta o que ocorreu nessa última semana, decisiva na história do país, que termina com uma tentativa reprimida de invasão ao Congresso e 15% da população de Santiago nas ruas hoje.

Marcos da crise chilena

Divulgação/Presidência do Chile via AFP

Transporte subiria 30 pesos

Neste mês, o governo anunciou o aumento da passagem de metrô em Santiago de 800 para 830 pesos chilenos (de R$ 4,50 para R$ 4,67, aproximadamente) no horário de pico.

Além do acréscimo, uma declaração do Ministro da Economia, Juan Andrés Fontaine, soou como uma provocação:

"Quem madrugar será ajudado, assim, quem sair mais cedo e pegar do metrô às sete da manhã tem a possibilidade de uma tarifa mais baixa que a de hoje".

A tarifa para os estudantes, de 230 pesos (R$ 1,30), não foi reajustada. Mas foram eles que capitanearam o chamado para as mobilizações. Pelas redes sociais, estudantes de Santiago convocaram os passageiros do transporte público a pular as catracas.

O movimento foi crescendo e cada vez mais jovens passaram a pular as catracas do transporte público. O que pareciam atos isolados de alguns "baderneiros" virou, em pouco tempo, um movimento generalizado.

Estamos tão acostumados a pagar a passagem e seguir as leis, que senti nervoso, mas estamos cansados das injustiças sociais e esquecemos o medo. Agimos sem medir muito as consequências

Valentina Miranda ,19, Porta-voz nacional dos estudantes secundaristas

Jonathan Oyarzun/Aton Chile/AFP

Estudantes abriram catracas para os idosos

Sem saber que estavam a ponto de iniciar uma revolução que, em 12 horas, levaria o governo a declarar estado de emergência nacional, Valentina diz que na sexta-feira, 19 de outubro, "algo mudou".

"Alguns jovens quebraram as catracas e convidavam trabalhadores e idosos a passar grátis. Eles falavam: 'hoje o metro é gratuito para que você possa ir para casa e comprar um quilo de pão'".

Ramiro Latorre/ EFE Ramiro Latorre/ EFE
Javier Torres/AFP

Aposentada pagou R$ 10 mil em cirurgia e apoia protestos

A aposentada Lila Ramírez, 64, se lembra do momento com alegria e emoção. "Os idosos falavam: Obrigado por lutar por nós, estávamos nos acabando".

Para ela, o momento sintetizou todas os rancores com relação às cobranças do Estado que ela vinha guardando havia anos.

Agora, Lila é uma dos milhares de chilenos que bate panelas na janela do apartamento durante o dia e durante a noite.

Ela não vai às manifestações. Ela só vai até a esquina de casa porque sofre de artrose. Já operou o joelho, o quadril e o braço direito. Essa última cirurgia custou 1,8 milhão de pesos (R$ 10 mil), além das mensalidades do plano de saúde.

No serviço público de saúde, ela não seria operada a não ser por doença de vida ou morte.

A situação da previdência no Chile é uma das principais preocupações dos manifestantes.

No Chile, os encarregados das aposentadorias são as Administradoras de Fundos de Pensões (AFP), entidades privadas que recebem parte do salário de todos os trabalhadores formais no país e calculam o valor que cada pessoa receberá quando tiver direito de deixar de trabalhar.

No caso de Lila, ela parou de trabalhar durante parte de sua juventude para cuidar dos filhos e recebe 170 mil pesos (R$ 900). Mas ela relata que colegas que trabalharam 40 anos com carteira assinada tiveram redução de 60% de salário com a aposentadoria.

"O presidente acha que é um pai para nós, que nós não temos voz. O aumento da passagem é uma desculpa, porque a indignação estava no limite", afirma.

As pessoas da minha geração aprenderam na juventude durante a ditadura de Augusto Pinochet, entre 1973 e 1990, que era melhor não reclamar

Lila Ramírez, 64, Uma das milhares de chilenas que bate panelas contra o governo

Pablo Vera/AFP

Começa com pizza

O psicólogo Andrés Cajás, 32, saiu do trabalho naquela sexta pensando em ir para casa, tomar banho e curtir a noite na sua boate favorita.

Mas se deparou com as ruas cheias de gente: as autoridades tinham fechado o metrô por causa da confusão.

"Milhares de pessoas lutavam para entrar nos ônibus. Outras andaram três horas para chegar em casa. Esse foi o início dos confrontos com a polícia nas ruas", diz Andrés.

Os confrontos foram crescendo: manifestantes organizaram barricadas, estações de metrô foram depredadas e prédios de empresas incendiados.

Na mesma noite, o presidente Sebastián Piñera foi fotografado comendo pizza com a família em um restaurante caro da cidade. Após o jantar, decretou o estado de emergência, ato que foi seguido pelo toque de recolher imposto pelo Exército.

"Minha vida até sair do trabalho era outra, nada a ver com a que eu estou vivendo agora", diz.

Dentista diz que vida é boa, mas não votaria novamente em Piñera

O sábado, 19, amanheceu com várias cidades depredadas e pessoas se aglomerando nas ruas batendo panela.

Mauricio Contreras, 53, dentista foi à rua como observador. Ele não participa das manifestações, condena a violência e critica que sejam destruídas infraestruturas necessárias para a população mais pobre.

"Não fui afetado com os estragos nos ônibus e metrô. Tenho carro, posso pedir Uber... Mas são 3 milhões de pessoas que precisam do transporte. Meus assistentes não têm como vir ao trabalho.".

Para ele, Piñera não é o único culpado pela crise. Ele afirma que o Chile é um país que era pobre, tem crescido, mas de maneira desigual — problema que, segundo ele, nem esquerda, nem direita conseguiram resolver.

Ainda assim, ele diz que não voltaria a votar em Sebastián Piñera. "Ele não tem mostrado empatia nessa crise, a comunicação dele tem sido péssima", afirma.

Na noite de sábado, após uma série de protestos pacíficos, mas também manifestações com barricadas, Piñera declarou que o país "está em guerra com um inimigo poderoso".

O chefe de Defesa Nacional e coordenador do Estado de Emergência, General Javier Iturriaga, contradisse o presidente: "Eu sou um homem feliz, não estou em guerra com ninguém".

E as depredações continuaram.

Só agora alguns de nós estamos acordando do sonho do 'sucesso'. Relaxamos em meio ao conforto sem ver o que acontecia ao redor.

Mauricio Contreras, 53, Dentista, foi aos protestos como observador

Huw Evans picture agency via BBC

Piñera revogou aumento, mas era tarde demais

Na manhã do domingo (20), o Twitter e as ruas chilenas se encheram com a hagshtag #noestamosenguerra (não estamos em guerra).

Nesse dia, passaram a circular na Web vídeos de supostos abusos de militares e polícia. Humilhações nas ruas, detenções dentro de propriedades privadas, tiros e abandono de feridos no meio da noite.

Também aparecem imagens de supostos militares participando ou sendo cúmplices de saques e incêndios a lojas.

Alguns manifestantes acusam as autoridades de criar um ambiente de conflito para justificar um golpe de Estado e começam os boatos de que haverá cortes de água e de luz.

Os chilenos vão às compras para tentar estocar alimentos, mas muitas lojas estão fechadas por medo dos saques. Em meio a esse clima de caos, Sebastian Piñera vai à TV avisar que revogará o aumento da passagem.

O psicólogo Andrés Cajas, que estava numa manifestação, diz que já era tarde demais e que os protestos seguiriam. Ele diz que mesmo com o fim da ditadura, em 1990, não foram tomadas as medidas necessárias para garantir o bem-estar social no Chile.

Foi a gota d'água, o cancelamento do aumento poderia ter sido feito antes. O presidente não entendeu nada. Não são 30 pesos, são 30 anos.

Andrés Cajas, 32, Psicólogo, segue manifestando apesar da revogação dos aumentos

Pablo Vera/AFP

Gerente não se arrepende de voto em Piñera

Com linhas de metro interditadas e o descontentamento geral, muitas pessoas decidiram ir manifestar em vez de trabalhar na segunda (22).

Nesse dia, os protestos mudaram de rumo e caminharam em direção aos bairros mais abastados de Santiago, chegando perto da casa de Kiko Couble, 64, gerente financeiro.

Ele diz que não participou do protesto, compartilha da indignação, mas não culpa Piñera. Para ele, o presidente atual não é o responsável pela situação atual do país.

Abertamente simpatizante do ditador Augusto Pinochet, ele justifica o estado de emergência e o toque de recolher.

Quando cães raivosos estão soltos, tem que amarrá-los. Há saques e incêndios, tem que impor a ordem. O problema desse movimento também é que não tem líder, não tem com quem negociar as medidas para acabar com esse caos.

Kiko Couble, 64, Apoia o estado de emergência e o toque de recolher

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