Doentes à margem da lei

Alto custo de remédio à base de maconha faz com que pacientes recorram ao tráfico ou plantem escondido

Wanderley Preite Sobrinho Do UOL, em São Paulo Fernando Moraes

Era domingo, 5 de julho, na zona leste de São Paulo. Edson (nome fictício) pulou da cama assustado com os gritos de uma invasão. Acordou com um policial entrando em seu quarto e com a mulher e a filha rendidas no sofá da sala.

Os policiais apreenderam 21 pés de maconha e levaram Edson sob a acusação de tráfico de drogas. Ele ficou 12 horas na cadeia, seis delas espremido em uma cela com outros dez detentos.

O rapaz de 32 anos só ganhou a liberdade quando a defensoria pública levou os exames de saúde de Edson, desenganado pelos médicos em 2016.

"Tenho úlcera no estômago e câncer no intestino", diz. "O médico me deu um ano e meio de vida porque não havia um dia em que eu não evacuasse sangue. Era uma questão de tempo."

Em uma manhã, no entanto, a surpresa: "Olhei para o vaso e não havia sinais de hemorragia. 'Estou curado!', pensei comigo."

Foi quando a esposa o lembrou que no dia anterior ele havia provado algumas gotas de um óleo à base de Cannabis (maconha) que a mãe dele faz uso por ser intolerante a medicamentos.

"Corri para contar ao médico, mas ele proibiu o canabidiol [como o composto da maconha é chamado] e pediu que eu voltasse ao omeprazol [conhecido remédio para úlcera]. No dia seguinte, evacuei sangue."

Edson, então, provou novamente do canabidiol. Como os sangramentos cessaram mais uma vez, ele decidiu que dali em diante plantaria maconha para produzir o próprio óleo medicinal enquanto recorreria aos advogados para pedir na Justiça um habeas corpus que o permitisse plantar a erva.

Os policiais não pararam para me ouvir ou analisar meus exames. Fui tratado que nem bandido. Só vi empatia dentro da cela quando respondi aos presos que estava ali porque plantava maconha para não morrer.
Edson, paciente oncológico

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Remédio de rico

Edson optou pela ilegalidade porque nunca teve dinheiro para importar o óleo ou comprar a única versão fabricada no país. Ela está à venda nas farmácias desde maio ao custo de R$ 2.500, segundo a Drogaria Araujo, a única das quatro maiores redes de farmácias do Brasil que respondeu a reportagem.

A venda do óleo com 30 ml fabricado pela brasileira Prati-Donaduzzi foi possível graças a uma resolução da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) de dezembro último.

Em reunião histórica, seus membros proibiram o plantio da maconha para fins medicinais, mas permitiram que a indústria nacional sintetizasse o canabidiol com insumos importados.

São 13 milhões de pessoas com alguma enfermidade que poderia ser tratada à base de Cannabis medicinal, segundo a Anvisa.

Até agosto do ano passado, 7.786 pacientes com cadastro na Anvisa pediam regularmente autorização para importar o óleo.

Um dos primeiros médicos a prescrever no Brasil, o neurocirurgião Pedro Pierro defende que "o canabidiol é a melhor opção para quem sofre de epilepsia, convulsões e dores crônicas", um óleo que não causa alucinações, mesmo quando rico em THC, o composto responsável pelo "barato" provocado pelo cigarro.

Mas, com esse preço na farmácia, fica impossível conter as plantações ilegais
Pedro Pierro, neurocirurgião

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O anjo

As pequenas plantações se espalham pelo Brasil. Elas salvam vidas, mas também alimentam um submundo povoado por traficantes que se aproveitam de famílias desesperadas para vender a elas um canabidiol de má qualidade.

"Jardineiro" ou "anjo" é como são conhecidas as pessoas que plantam maconha, doam ou vendem as flores ou o óleo já pronto a quem não pode pagar pelo remédio da farmácia e tem medo de cultivar em casa e acabar preso como Edson.

Até encontrar de fato um "anjo", pais e mães de baixa renda chegam a pagar R$ 500 por um óleo ruim, feito com maconha prensada e oferecido em grupos de WhatsApp e Facebook.

"A maconha prensada é perigosa. Ela tem agrotóxico, pode vir com sujeira e misturada a outras plantas", explica o neurocirurgião. "Cada paciente precisa de uma variedade específica da Cannabis, o que é impossível de saber quando o produtor é o tráfico."

Ele diz que as flores inteiras produzem um óleo melhor, mas podem gerar efeitos colaterais, "como sonolência e irritabilidade". "O mais importante: sem saber as proporções dos cannabinoides [as substâncias que compõem a planta], o tratamento pode falhar porque o artesanal geralmente mantém as proporções da planta, diferente do industrial."

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"Uma planta divina"

Foi para conter a ação de traficantes e dar uma opção ao óleo da farmácia que um padre na zona leste de São Paulo abriu as portas de sua paróquia para um curso gratuito sobre canabidiol em parceria com a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Médicos, advogados e agrônomos ensinam desde os benefícios medicinais da erva, ao plantio, colheita e fabricação do óleo.

"Toda a lei desumana deve ser descumprida", desafia convicto o padre Antônio Luís Marchioni, mais conhecido como padre Ticão, da paróquia São Francisco de Assis, em Ermelino Matarazzo.

"Digo que a pessoa deve analisar tudo e decidir por si mesma se deve ou não plantar. Não quero ver ninguém por aí dizendo que foi o padre que mandou."

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Se um familiar está sofrendo e depende do remédio, tem de plantar. É uma planta divina. Criminoso é quem proíbe

Padre Ticão

A primeira versão do Curso Livre Sobre Cannabis Medicinal atraiu 700 alunos, que se abarrotaram no salão paroquial no ano passado. As inscrições para o 4º curso, agora online, já ultrapassaram os 2.000 inscritos.

O padre, que toda sexta-feira distribui a mães e pais as sementes que recebe de jardineiros, lembra que Jesus viveu desafiando as leis de sua época. "Naquele tempo não podia fazer nada no sábado, mas ele realizava seus milagres nesse dia. Por que ele decidia curar justo no sábado?"

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Se Jesus estivesse aqui hoje, ele ia distribuir a planta. Não ia ser nem a semente, como eu faço.

Padre Ticão

Cercada de maconheiro

Foi em sua primeira aula no curso do padre Ticão que dona Carmem (nome fictício), 59, se deu conta de onde tinha chegado para tentar aliviar o sofrimento da neta de 16 anos, nascida com paralisia cerebral.

"Até o ano passado, eu era evangélica da Congregação Cristã, jamais admiti maconha perto de mim. De repente me vi encolhida nos fundos de uma igreja católica cercada de maconheiro", diverte-se.

Mas dona Carmen acabou se impressionando com a palestra e, quando se deu conta, "estava na fila do gargarejo". Talvez o óleo de que falavam podia finalmente devolver o sorriso ao rosto da neta, perdido desde que passara a fazer uso de um remédio receitado por uma psiquiatra.

A garota nasceu com o cérebro atrofiado. Nunca andou ou conversou. "O sorriso dela era tudo o que eu tinha", diz a avó, que assumiu os cuidados da neta em razão das crises da filha, até hoje lutando contra a depressão do pós-parto.

Para conter as dores da escoliose (curvatura anormal da coluna), do quadril descolado, sinusite, inflamações, convulsões e autoagressões da garota, a médica receitou um calmante que deixou a menina "parecendo uma morta-viva".

"O olho ficou vago, o pescoço caiu e o sorriso se foi", conta a avó, com a voz falhando. "Voltei na médica, expliquei tudo, mas ela receitou o mesmo remédio. Fiquei enfurecida e fui tirando o medicamento aos poucos. Foi quando ouvi falar do canabidiol e fui ao padre Ticão."

Desde então, dona Carmem não perdeu uma só aula. Enquanto aguarda na Justiça a autorização para plantar maconha em casa, ela aprendeu tudo sobre o cultivo, encontrou jardineiros "que são mesmo anjos" e lhe doam as flores da Cannabis.

"Queria plantar, mas tenho muito medo da polícia. No curso, aprendi a extrair o óleo em casa das flores que eu ganho." Para isso ela usa utensílios domésticos, como balança, potes de vidro e panela. Ela estima que o custo da produção será de R$ 30 por cada 10 ml.

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Antes minha neta tomava quatro remédios, mas agora só precisa do canabidiol e mais um que pretendo tirar também. Ela parou de convulsionar, de se agredir e voltou a ter um sorriso lindo

Dona Carmem

"Eu posso plantar"

A saga de quem busca o óleo no mercado negro ou se arrisca a plantar em casa sem autorização acabou para pelo menos 82 brasileiros que ao longo dos anos receberam da Justiça a autorização para o cultivo terapêutico de Cannabis.

A dona de casa Emília Santos Giovannini, 49, recebeu o habeas corpus liminar em 11 de junho e a sentença definitiva no dia 16 de julho. A partir de agora, ela pode cultivar 12 plantas dentro de casa para tratar do filho Ítalo, de 8 anos, diagnosticado com autismo severo e retardo mental.

Dona Emília espera gastar R$ 400 para comprar a tenda de cultivo, vasos, adubo e iluminação especial: as lâmpadas para cada fase de crescimento da erva devem aumentar em 40% a conta de luz.

"Em cinco meses as sementes que a gente plantou começarão a florir", prevê Emília, entusiasmada. É a chance de continuar vendo o filho melhorar.

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Nas crises ele chorava, gritava, se agredia, batia a cabeça na parede, se mordia e mordia a gente. Já não víamos a nossa família, não visitávamos os nossos amigos.

Emília Santos Giovannini, mãe do Ítalo

Tudo começaria a mudar em setembro do ano passado, meses depois de ouvir pela primeira vez sobre o canabidiol. A novidade foi relatada por outras mães da escola para crianças especiais que Ítalo acabara de ser matriculado.

Em pouco tempo, dona Emília aprendeu a plantar e extrair a resina no curso do padre Ticão. Mas como tinha medo de acabar presa, ela fez o pedido de habeas corpus e passou a pagar R$ 300 pelos 30 ml do óleo artesanal "porque o da farmácia é para gente rica".

"Em uma semana o Ítalo era outro!", lembra a mãe, que retirou seis dos sete remédios que o filho tomava. "Ele parou de se agredir, começou a sorrir e entender nossos pedidos."

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Agora meu filho guarda os brinquedos quando a gente pede, mostra o que deseja apontando com a mão e recusa o que não lhe faz bem. Tudo isso é novo. O meu filho renasceu

Emília Santos Giovannini, mãe do Ítalo

Associações conseguem autorização

Além dos pacientes que conseguem habeas corpus para plantar maconha em casa, duas associações têm autorização para cultivar, fabricar o óleo e distribuir a seus associados. Com autorização definitiva desde 2017, a Abrace (Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança), na Paraíba, espera chegar ao fim do ano atendendo 3.000 pessoas.

No dia 15 de julho, a segunda associação brasileira conseguiu o mesmo. Em caráter liminar (provisório), a Apepi (Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal), no Rio de Janeiro, recebeu o aval para plantar. Serão dez mil pés de Cannabis para atender cerca de 700 associados.

O UOL procurou a Pratis-Donaduzzi e a Anvisa para comentar o alto custo do remédio na farmácia, mas as perguntas enviadas não foram respondidas.

A agência se recusou a informar os nomes dos fornecedores da farmacêutica por se tratar de "sigilo industrial" e informou que "não há outros pedidos de autorização" por parte da indústria nacional para produzir um novo fármaco do tipo no Brasil.

Procurado, o Ministério da Saúde não informou se planeja fornecer o medicamento no SUS (Sistema Único de Saúde), que oferece gratuitamente 147 medicamentos de alto custo.

"Até o momento, as aquisições realizadas pelo ministério visam atender estritamente a sentenças judiciais para importação destes produtos, que não são incorporados ao SUS", afirmou em nota.

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL
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