'Ele queria ser exemplo'

Ex-professor de jovens mortos por PM foi pesquisado por suspeito de matar Marielle e ameaçado por milícia

Herculano Barreto Filho Do UOL, no Rio Herculano Barreto Filho/UOL
Herculano Barreto Filho/UOL

Na escola, Edson Arguinez Júnior e Jhordan Luiz Natividade, os dois jovens negros encontrados mortos após serem baleados em uma ação policial registrada em vídeo na madrugada de 12 de dezembro, tinham comportamentos contrastantes.

Jhordan era extrovertido e brincalhão. Três anos mais velho, Edson tinha uma postura reservada fora da sala de aula. Mas era uma das lideranças na sua turma, composta por alunos com histórico de reprovação do turno da tarde no Ciep 210, em Belford Roxo (RJ), próximo ao local onde ocorreu o crime em uma região sob o domínio da milícia.

Ele dizia: 'professor, tenho muita dificuldade, mas não posso desistir. Porque, se eu desistir, os meus irmãos vão desistir também. E sou um exemplo pra eles'. O Edson lutava porque queria ser um exemplo."

Pedro Mara, professor de Sociologia e ex-diretor da escola

Corpos foram encontrados em área de milícia

'O zoeiro' e o responsa

Dinho, como Edson era conhecido entre os amigos, tinha uma postura reservada e era apaixonado por futebol. Pelé, apelido de Jhordan, era conhecido pela personalidade mais expansiva e brincalhona do típico moleque do fundão da sala de aula.

"O Jhordan era aquele moleque da zoação, que fazia a alegria da turma dele. O Edson era mais tímido, mas botava moral. Ele tinha uma liderança na turma dele", diz Pedro Mara, ao relembrar da época em que era professor de Edson, em 2018.

Após um cinedebate sobre o filme 'Tropa de Elite', Edson perguntou o porquê de pretos não poderem viver como os brancos. O Edson era responsa e tinha plena consciência da realidade."
Pedro Mara, professor de Edson em 2018

Alexsandra Santana de Oliveira, mãe de Jhordan, relembra do último pedido do filho, que sonhava em se alistar no Exército após completar a maioridade, em 2021: ele queria uma camisa branca de Natal.

"Ele dava bênção aos mais velhos e adorava criança. Vivia sujando as roupas, porque tava sempre sentado no chão. Ele era um meninão, só tinha tamanho", sorri a mãe, como quem busca algum tipo de consolo nas recordações do filho, guardadas na memória.

Ex-professor de jovens mortos fala sobre o caso

Reprodução

Inimigo íntimo: PMs moravam na mesma região de vítimas

Edson e Jhordan estudavam perto de casa em uma área plana e de ruas planejadas cortada pelo rio Botas, que separava bairros sob o domínio do tráfico e da milícia. A vizinhança, inclusive, é conhecida por ser formada por muitos policiais militares em uma região sob o domínio de grupos paramilitares.

Entre eles, os PMs presos preventivamente, suspeitos de envolvimento no crime. O soldado Jorge Luiz Custódio da Costa, que apareceu no vídeo dando um tiro nos jovens, morava no bairro Xavante, o mesmo onde ficava a escola dos garotos.

O cabo Júlio César Ferreira dos Santos, filmado na mesma ocorrência, residia em Heliópolis, também em área de milícia.

"Dois rapazes não podem andar de moto só porque são pretos?"

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Lei do silêncio

Pedro Mara circulou próximo ao local do crime na semana passada para buscar informações sobre o caso e prestar auxílio às famílias.

"Havia uma espécie de lei do silêncio. Ninguém falava nada", disse.

Ele chegou a receber uma mensagem de voz de um ex-aluno. "Não vou ficar andando assim por aí. Os caras é [sic] covarde pra caraca. E vão ver que eu tô correndo atrás", explicou. Em seguida, o mesmo jovem enviou outra mensagem, o aconselhando a "deixar isso pra lá" e a tomar cuidado.

Para o professor, também foi o momento de encarar fantasmas do passado. Em julho de 2019, quando era diretor da escola, Pedro pediu licença após receber uma ameaça direta da milícia. Na época, um homem a mando dos paramilitares o procurou dentro do Ciep para dizer que ele seria assassinado se continuasse na escola.

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"A milícia entendeu que o meu nome estava em evidência e poderia trazer problemas para os negócios deles. O rapaz descreveu todo o trajeto de 43 km que eu fazia até chegar na escola. Aí, disse que eu poderia ser morto em um assalto disfarçado."

Essa pessoa [autor da ameaça] era conhecida. E falou dando a entender que tinha até tentado segurar a onda [dos milicianos que estariam tramando a sua morte, caso seguisse na escola]."

Segundo ele, o autor da ameaça ainda citou a inexistência de câmeras de vigilância no trajeto como uma forma de garantir a impunidade em um assassinato.

Na época, o nome de Pedro Mara estava em evidência, já que constava nas pesquisas reveladas à imprensa feitas pelo policial militar reformado Ronnie Lessa, acusado de matar a vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinada a tiros na noite de 18 de março do ano passado.

Preso em março daquele ano, Ronnie fez consultas em decorrência de uma briga entre Pedro Mara e o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos), deputado estadual na época do desentendimento, por conta do projeto "Escola sem Partido".

Tudo começou em maio de 2017, quando Pedro foi a uma audiência pública na Câmara de Vereadores de Niterói (RJ) para questionar o projeto "Escola sem partido", uma das bandeiras da família Bolsonaro.

Acusação de apologia à maconha

Depois desse episódio, o filho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) acusou o educador de defender o uso da maconha em sala de aula.

O caso chegou ao MP, quando Flávio Bolsonaro ingressou com ação, acusando Pedro Mara de fazer apologia ao uso da droga. E ganhou desdobramentos com a gravação de um vídeo sobre o caso em suas redes sociais com acusações contra o professor, militante pela descriminalização das drogas e que tem uma folha de maconha tatuada no antebraço.

O caso foi arquivado pela promotoria, que considerou a tatuagem como parte do exercício de liberdade de expressão.

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