O tempo e a equilibrista

Com ajuda de desconhecidos e livros doados, aluna em SC se reveza entre trabalho e tempo de estudar para Enem

Hygino Vasconcellos (texto) e Anderson Coelho (imagens) Do UOL e colaboração para o UOL, em São José (SC)

Uma escrivaninha ladeada por bilhetes com macetes para as provas seria o cenário ideal para um local de estudo. Mas a realidade é outra para Diana Vanes, 18, que mora com a família em um condomínio de prédios em São José (SC), na região metropolitana de Florianópolis.

Como o apartamento é pequeno, para se preparar para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) a jovem estuda onde e quando dá.

Ela divide o quarto com os dois irmãos mais novos, de 8 e 14 anos, com as camas dos três enfileiradas, sem muito espaço entre elas. Não cabe um móvel a mais.

Diana fica em sua cama ou na mesa da sala, onde a família faz as refeições. Porém, com a casa cheia à noite, fica mais fácil perder a concentração. "No final de semana, então, é complicado."

De manhã, ela estuda em uma escola estadual. À tarde, trabalha quatro horas como jovem aprendiz no RH de uma rede de varejo de móveis e eletrodomésticos.

Para ganhar tempo, fica no colégio para almoçar e estudar na biblioteca. "Se eu fosse para casa, não daria tempo de chegar ao trabalho, porque eu precisaria pegar dois ônibus", conta.

A jornada no trabalho termina às 18h, mas Diana só chega em casa às 19h30, porque o emprego fica na cidade vizinha de Biguaçu. As poucas horas restantes são o que lhe sobram para se preparar para a escola e para o Enem. Ou pouco menos de duas horas por dia.

Ao longo do ano, Diana não fez curso preparatório e conviveu com falta de professores na escola. Só na disciplina de português já ocorreram quatro trocas. Atualmente, a professora substituta está de licença.

A estudante teme pelo resultado na redação, que tem caráter eliminatório se ela receber um zero. Ela teve de se virar e arrumou ajuda até de desconhecidos. Uma estudante de uma escola particular tem corrigido as redações feitas por ela.

Elas só trocam bilhetes: "Oi, sou a Fernanda, bom te conhecer", escreveu a ajudante ao final de uma redação.

Os textos de Diana chegam até ela por um professor que dá aula nas duas escolas. Depois de corrigido, o pedaço de papel volta para a estudante de São José com apontamentos do que pode ser melhorado.

"Gostei muito da sua redação! Vou te passar umas dicas, tá bom? *Introdução: busque deixar os dados para comprovar os seus argumentos no desenvolvimento (2º e 3º parágrafos). Use retratos históricos, citações de filósofos ou filmes/séries (não esqueça de colocar o autor)", acrescentou Fernanda.

Outro estudante a auxiliou com matemática, que ela considera outro ponto fraco. "A gente fazia até chamada de vídeo e ele me ajudava a fazer os exercícios."

De uma amiga de sua mãe, Diana ganhou apostilas de um curso preparatório prestigiado na região.

Mas, como as provas acontecem em 21 e 28 de novembro, ela decidiu focar nos conteúdos com mais dificuldades. Vendo que não conseguiria ler tudo a tempo, compartilhou os livros com os amigos que também se preparam para o Enem e desabafa: "Não me sinto preparada".

Diana sabe que o emprego como jovem aprendiz toma parte do tempo que poderia ser aproveitado nos estudos. Mas não consegue abrir mão dele porque a situação financeira de sua família ficou complicada com a pandemia.

No ano passado, a mãe havia pedido demissão para tentar um novo serviço. Com a disseminação da covid, os planos viraram de ponta-cabeça.

Sem trabalho, a mãe recebia o auxílio emergencial. "Bem na hora em que ela saiu daquele emprego, deu a pandemia. Ela estava havia cinco anos lá. Só não estava aguentando mais a cobrança e pediu para sair. Daí ela ficou o ano passado sem trabalhar."

A casa, com cinco pessoas, passou a ser mantida apenas com o salário do padrasto de Diana em uma empresa de elevadores e a pensão da irmã dela.

Em dezembro, Diana virou jovem aprendiz. Os R$ 280 de vale-alimentação acabaram entrando no racha das despesas da família. Pouco tempo depois, a mãe conseguiu emprego na mesma rede de varejo.

Hoje, parte dos R$ 625 que a estudante recebe paga a prestação do computador, adquirido em 12 vezes. Foi preciso para acompanhar o ano de aulas remotas, em vez da tela pequena do celular. O aparelho foi adquirido no cartão de crédito da avó, que ajuda nas prestações.

"Fiquei pensando: tenho que aproveitar enquanto estou trabalhando porque no próximo ano é faculdade. Vai saber quando eu vou conseguir outro trabalho? Se eu não tivesse o trabalho, o computador nunca iria existir."

O salário também ajudou a pagar a taxa de inscrição no Enem, de R$ 85.

O dinheiro continua curto. Então Diana tenta isenção para participar do processo seletivo em duas universidades: na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina). "Mas ainda não sei se vou conseguir."

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