Madrugada de estudos

Vivendo com Bolsa Famíia, mãe solo no Rio deixa de dormir para se preparar e tem negada isenção no Enem

Marcela Lemos (texto) e Lucas Landau (imagens) Colaboracão para o UOL, no Rio

É com um colchão no chão, um notebook emprestado e o filho de dois anos a tiracolo que a estudante Thais Figueira de Souza, 28, moradora de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, busca aprovação no curso de comunicação social em uma das faculdades públicas do Rio de Janeiro. No fim de novembro, a mãe de Benedito fará seu primeiro Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).

Kika, como é chamada, se reveza entre os estudos e a maternidade. Sem recursos para bancar um curso preparatório e sem uma vaga em creche para Benedito, é durante a madrugada, enquanto o menino dorme, que ela dedica mais tempo para a revisão das matérias.

Consegue estudar cerca de seis horas por dia: quatro durante a madrugada e outras duas depois do almoço, quando um aparelho celular costuma distrair o garoto enquanto ela acompanha aulas gratuitas em plataformas na internet.

Sem condições de investir nos estudos, acaba contando com sites que disponibilizam conteúdos gratuitos. Já fez provas antigas e simulados online e usou uma plataforma de correção de redações.

"Eu envio as redações, eles devolvem corrigidas e não pago nada por isso", conta.

No final de semana, assiste a filmes e séries com temas que podem contribuir para a prova, além de ouvir podcasts enquanto realiza tarefas domésticas. "Acho que é uma ferramenta que veio para ajudar os estudantes", afirma.

Thais mora no Rio há sete anos. De origem indígena, completou o segundo grau em uma escola pública na comunidade de Mauazinho, em Manaus. Em 2012, passou no curso de letras na Ufam (Universidade Federal do Amazonas), mas não concluiu a graduação. Ela trancou a faculdade por não se identificar com a grade curricular.

Na ocasião, entrou pelo PSC (Processo Seletivo Contínuo) --seleção feita em forma de avaliação para os estudantes das três séries do ensino médio. Os pontos são acumulativos.

A manauara foi a primeira integrante da família a ingressar na faculdade, mas conta que a vida estudantil não era fácil.

Ao deixar a Ufam, se mudou para o Rio. Agora, aposta na experiência dos anos de faculdade para garantir uma boa nota e concretizar o sonho de voltar para a universidade.

Desempregada há quatro anos e separada do pai de Benedito desde dezembro do ano passado, Kika vive de favor na casa de uma acolhedora em Nova Iguaçu. Ela diz crer que o acesso à faculdade é o único caminho para conseguir melhorar de vida.

"Estudar é o único caminho. É uma porta para proporcionar um conforto para minha maternidade, para meu filho e para poder incentivar os talentos dele também. É uma forma de estar inserida no mercado de forma valorizada", afirma a estudante.

Ela ficou três meses estudando pelo celular, pois o computador da casa onde mora parou de funcionar em julho. A ajuda para seguir em frente veio de uma vizinha, que conseguiu um notebook emprestado para ela.

"É difícil conciliar a falta financeira, a falta de estrutura e ainda um filho. A demanda da maternidade é muito difícil. Não posso contar com uma creche e a falta desse suporte deixa uma lacuna muito intensa. Eu sei que estou em enorme desvantagem em relação a outros candidatos, mas é a única chance que tenho. Se não passar, tento de novo".

Vivendo basicamente com R$ 375 do Bolsa Família, Thais pediu isenção da taxa de inscrição no Enem deste ano.

O Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), responsável pela organização do exame, negou o benefício à candidata, porque ela faltou às provas da edição passada, em janeiro.

Ela havia sido contemplada com o benefício em 2020, mas não compareceu com medo de se infectar e teve o pedido recusado. O jeito foi contar com a ajuda de um professor de Manaus.

Após efetuar o pagamento da taxa, de R$ 85 e que representa 24% da renda da estudante, o STF (Supremo Tribunal Federal) acabou determinando a reabertura do prazo de requerimento de isenção e desobrigou a necessidade de os candidatos apresentarem uma justificativa para ausência no exame de 2020.

"Acabei pagando a prova e agora estou me sentindo lesada pelo próprio governo. Não há nenhum caminho para eu pedir reembolso desse dinheiro", disse.

Ajudei uma amiga, mas o certo era ela ter a isenção. O Estado coloca empecilhos absurdos em um país com um dos maiores níveis de desigualdade. A ajuda por amizade acaba sendo uma política informal bastante comum de distribuição de renda."

Fabio Magalhães Candotti, professor de Thais

Ela se acostumou a driblar dificuldades. Como o dinheiro do Bolsa Família só dá para metade do mês, ela evita sair e compra alimentos com maior durabilidade.

Comunicativa, extrovertida e bem-humorada, Kika já trabalhou como soldadora, ambulante e garçonete, mas é como artista que mais se identifica.

Poeta marginal, já foi premiada em concurso de Slam, uma competição de poesia falada. Costuma abordar em seus textos principalmente temas como violência e racismo. Vai usar toda essa sua experiência com papel e caneta para alcançar uma boa nota na redação. "A redação abre portas, né? Indo bem nela já é um bom caminho andado."

Como mora sozinha, se for aprovada, precisa ainda conseguir uma creche para matricular o filho. "Eu vou dar meu jeito, eu sei que é difícil. Nem que eu me forme em mais tempo, mas em até seis anos quero concluir essa etapa", afirma.

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