Entre a cruz e a espada

Sem estrutura sanitária e financeira, moradores de favela de SP se arriscam contra a pandemia e a fome

Luís Adorno Do UOL, em São Paulo Morador constrói barraco sobre córrego na favela do Flamengo - Andre Porto/UOL

É possível ser a favor do isolamento como medida essencial e necessária contra a expansão do novo coronavírus no Brasil e, ao mesmo tempo, entender que, sem aporte financeiro e social, as pessoas mais vulneráveis têm que se arriscar para obter o mínimo. Se isolar, a fome pega; se sair, a saúde fica em xeque.

Na favela do Flamengo, no Jardim Peri, zona norte de São Paulo, as vielas são estreitas e de terra. Já os barracos são divididos entre os que estão sobre o córrego, que serve como esgoto, ou ao lado da quadra poliesportiva, que beira a água suja. São raras as pessoas que usam máscara ou carregam consigo álcool em gel. Há muitas crianças brincando aglomeradas próximas ao lixo.

No ano passado, muitos dos que ali vivem dizem ter permanecido nos seus barracos com a ajuda do auxílio emergencial do governo federal, que ofereceu de R$ 600 a R$ 1.200 (para mães chefes de família) por mês. Com o novo valor que deve ser oferecido, entre R$ 150 e R$ 375 ao mês, e com a alta de produtos básicos, como botijão de gás, arroz, feijão, carne, ovo e óleo, não há outra alternativa que não seja ir para a rua à procura de trabalho.

O UOL acompanhou a rotina da comunidade durante um dia com o líder comunitário Samuel do Povo, 33. "Aqui, o pessoal não tem o básico dentro de casa. Tem muitos que não têm um sofá, uma cama. Então, necessariamente, vão para a rua. Se o auxílio emergencial ajudasse de verdade, as pessoas iam ficar um pouco mais em casa, porque teriam o que comer e como preparar o que comer", diz.

Morar na comunidade é bem difícil. São vários problemas. A covid-19 está matando muita gente, mas também tem a fome. Não acho certo ter que escolher qual problema é pior ou maior. Ambos são cruéis.

Andre Porto/UOL  Andre Porto/UOL

Cara a tapa

Roberto Pereira da Silva, 54, mora na região do Jardim Peri desde que nasceu. Ele caminha com muita dificuldade. O joelho da perna esquerda se dobra com dificuldade. Sem tempo de ir ao médico, ele não sabe explicar por que não consegue andar normalmente. Pedreiro, se entorta para conseguir subir as escadas do sobrado que está ajudando a construir no bairro para um cliente.

Ao lado de dois ajudantes, a reportagem observou ele se desdobrando para vedar um cano estourado na cozinha da casa, enquanto também tinha que lixar o gesso do acabamento do teto. É esse o serviço que faz Seu Roberto, orgulhosamente negro, chegar em casa com pó branco no rosto, braços, roupas e sapatos. Casado e com oito filhos para criar, o pedreiro diz não poder nem pensar em ficar parado:

No meio da pandemia, eu até parei um tempo, com medo da doença. Mas não teve como. Precisei fazer uns biquinhos. Na verdade, preciso fazer bicos.

Ele diz que, no ano passado, quando recebeu três parcelas de R$ 600 do auxílio emergencial, conseguiu fazer as compras do mês para a família no mercado. "Parece que foi diminuindo o tamanho do dinheiro, porque foi aumentando os preços das coisas no mercado, né? Agora, piorou. Piorou muito", afirma.

São R$ 2 mil de gasto essencial por mês. Com compra do mês, água, luz... Vai embora o dinheiro que eu nem vejo. Não dá, não. Vou ter que continuar trabalhando, não vai ter jeito.

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Mães solo

No barraco de madeira da dona de casa Aline Isabel de Jesus Ribeiro, 36, repórter e fotógrafo só podem entrar e permanecer um de cada vez. Não cabem três adultos. Mas ela vive ali com três filhos pequenos. Aline tem outros dois filhos que não moram com ela.

A casa de Aline fica na cabeceira do córrego. Dentro, há uma pia de louça pequena, um armário, uma televisão, um fogão e o encanamento do banheiro -que deságua no riacho- vazando próximo do colchão.

O que pode parecer uma situação difícil, para ela, em parte, é uma sensação próxima a de um alívio. Meses atrás, após uma enchente, ela perdeu tudo o que tinha. Ela relembra:

Tive que morar de favor na casa do pessoal, porque não tinha onde ficar. Conforme choveu, as madeiras deram uma arriada e fez um buraco no meio do meu barraco.

Preocupada com a pandemia, ela diz que tem muito medo do vírus, porque teve conhecidos que morreram de covid-19. "Mesmo com medo, precisei durante toda a pandemia ir atrás de ajuda de cesta básica. Desde que começou tudo isso, ficou mais difícil achar serviço, mas, se eu achar, eu vou agarrar. Você não agarraria?", pergunta.

Ponho na mão de Deus. Tudo aqui a gente põe na mão de Deus, né? Porque senão não vou viver. Deus sabe de todas as coisas.

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Sua vizinha Jaíne Xavier, 28, também dona de casa, tem um barraco um pouco maior. Ele tem um quarto e cozinha que cabem facilmente mais pessoas e um quintal sobre o córrego com vista para a água descendo pelo morro trazendo sujeira e mau cheiro. Também com medo da covid-19, ela lamenta ter perdido o emprego no início da pandemia.

"Eu fazia bico em restaurante. Quando veio a pandemia, teve que fechar tudo e eu fiquei desempregada. Recebi quatro parcelas de R$ 1.200 e outras quatro de R$ 409 do governo, porque sou mãe solteira, tenho dois filhos. Com a queda no valor deste ano, eu vou ter que complementar de algum jeito. Minhas crianças tomam leite, usam fralda", relata. Ela acrescenta:

Com R$ 150 ou R$ 300 não vai dar para trazer nada para dentro de casa. Hoje, eu complemento com ajuda de cesta básica. Eu e meu filho, também, às vezes, juntamos latinha para comprar um pão de manhã.

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Geladeira como armário

Soropositivo e com tuberculose, Joselito Alves da Silva, 38, não consegue dormir quando chove. Deitado em sua cama, se ele olha para baixo, pode ver o córrego pelas frestas das madeiras do chão de seu barraco. Consequentemente, quando chove muito, sua casa é uma das primeiras a inundar.

Para entrar em casa, ele tem que, com cuidado, atravessar uma ponte feita com restos molhados de madeira, que ligam a viela mais próxima da comunidade. Dentro, há uma cama, com colchão, um ventilador, um armário, um quadro na parede, uma televisão sintonizada na TV Record e uma geladeira com apenas panelas vazias, um limão cortado e uma garrafa pet de água dentro.

Ano passado, apesar de ter perdido o local onde dorme para uma enchente e ter dependido da ajuda de conhecidos, quando recebeu por quatro meses R$ 600 do governo, conseguiu a proeza de não passar fome. "Ajudou bastante. Eu não tenho renda. Eu tenho problema de saúde. Eu moro em cima do rio. Olha o barraco: cai, mas não cai. Se der uma chuva, adeus", conta.

Ele diz que, atualmente, consegue se alimentar todos os dias com arroz, feijão e salada. "A gente vai na feira, faz a xepa, cata tomate, cebola e pronto. Quando aparece uma mistura, a gente vai no açougue e pede um pé de frango, uma carcaça, vai comer osso de frango", diz.

Eu moro só. Sou sozinho. E é isso. Minha vida é essa. Até quando vai? Não sei. Mas minha expectativa não é muito boa.

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A grande família

O casal Joelson Bragança, 32, e Juliane Bezerra dos Santos, 36, têm na favela do Flamengo um comércio de venda de pastéis e salgados. Na casa deles, vivem 13 pessoas. Além do casal, são nove filhos, uma neta e a sogra. Todos apertados, mas numa área que, pelo menos, é longe do córrego. Quase um luxo dentro da comunidade.

"Gasto uns R$ 2 mil no mês pra sustentar os filhos. Então é difícil parar, entende?", afirma Juliana. Ela também relata temer o vírus, mas diz não ter informações precisas sobre o que fazer ou deixar de fazer. "Tem gente que fala pra se isolar, tem gente que não. Eu não quero ninguém da minha família contaminada, lógico, mas vou trabalhando enquanto isso", complementa.

O marido diz que o comércio do casal funcionou normalmente durante toda a pandemia. "Eu não fechei. Não parei de trabalhar. Trabalhei normal. Porque tem que trabalhar. Se não trabalhar, não vou comer. São nove filhos, uma neta e a sogra, que está morando com a gente", relata.

O casal recebeu auxílio emergencial do governo federal no ano passado, mas diz que, com o aumento dos preços dos produtos básicos, o novo auxílio proposto "não paga nem dois botijões de gás", segundo Bragança.

Ueslei Marcelino/Reuters Ueslei Marcelino/Reuters

Caos de Bolsonaro

O governo federal decidiu, no final da semana passada, que voltará a pagar o auxílio emergencial em abril deste ano após uma lacuna de quase três meses em que não prestou assistência financeira a brasileiros durante a pandemia. No ano passado, a gestão do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) começou o auxílio pagando R$ 600 por mês e terminou com um valor de R$ 300. Agora, vai variar entre R$ 150 e R$ 375.

Na sexta-feira (19), Bolsonaro afirmou que, com fome batendo à porta das pessoas, o caos estava próximo de chegar ao Brasil. No período da pandemia no país, a inflação sentida pelas famílias brasileiras mais pobres foi de 6,75%. Além dos indicadores econômicos e sanitários, o presidente registra o pior momento em sua popularidade, segundo o Datafolha.

Bolsonaro tem criticado os estados que têm decretado toque de recolher para tentar manter as pessoas dentro de casa. Segundo o presidente, se trata de "estado de sítio". Em tom de ameaça, no final da semana passada, o presidente explicou que a consequência do vírus pode ser ainda pior:

O terreno fértil para a ditadura é a miséria, a fome, a pobreza, onde o homem com necessidade perde a razão. Estão esperando o quê? Vai chegar o momento? Gostaria que não chegasse, mas vai acabar chegando esse momento.

Andre Porto/UOL  Andre Porto/UOL
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