'Não quero morrer de covid'

Colega de técnico de enfermagem morto denuncia suspeita de foco de contágio e falta de proteção em CTI no Rio

Herculano Barreto Filho Do UOL, no Rio Herculano Barreto Filho/UOL

A morte por coronavírus do técnico de enfermagem Jorge Alexandre de Oliveira Andrade, 45, que estava no grupo de risco por ter diabetes e hipertensão, fez com que uma colega de trabalho denunciasse um possível foco de contágio no Hospital Municipal Lourenço Jorge, principal unidade de emergência na zona oeste do Rio.

A técnica de enfermagem Elaine Sales, 38, usou o Facebook para revelar o afastamento de 42 colegas de trabalho por suspeita de covid-19, falta de EPIs (equipamentos de proteção individual) e de testagem para funcionários com sintomas compatíveis com a doença no hospital.

Ela integra um grupo de profissionais do hospital que encaminhou a denúncia ao MPF (Ministério Público Federal), MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro), MPT (Ministério Público do Trabalho) e Defensoria Pública. Segundo o Cofen (Conselho Federal de Enfermagem), 23 profissionais da área de saúde morreram em decorrência da covid-19 —as causas de outras nove mortes estão em análise.

Ao UOL, a técnica de enfermagem relatou que outros profissionais com idade avançada ou doenças crônicas continuam trabalhando normalmente em meio à pandemia. E falou sobre a dura realidade de quem coloca a própria vida em risco para enfrentar a pandemia.

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'O Jorge não foi o único infectado no hospital'

Sou técnica de enfermagem no Lourenço Jorge há oito anos. Com a morte do Jorge [por covid-19 na última segunda-feira (13)], as pessoas que sofriam caladas resolveram se manifestar contra o sistema.

Na nossa rotina de trabalho, a gente precisa lidar com várias irregularidades. Eu resolvi dar a minha cara à tapa e denunciar o que a gente presencia. Eu não estou preocupada com represálias. Eu não quero morrer de covid como o Jorge morreu

O Jorge não foi o único profissional infectado dentro do hospital. Já tivemos 42 colegas afastados porque estavam com sintomas de covid. Em alguns casos, há a confirmação da doença porque as pessoas foram fazer os exames por conta própria. Não há teste no hospital para os profissionais de saúde. E, mesmo diante da morte do Jorge, nada mudou.

Eu faço parte da estatística de profissionais de saúde que apresentaram sinais da doença no Lourenço Jorge. No dia 9 de abril, eu tive sintomas compatíveis com a covid, como dores no corpo e secreção em vias aéreas. Três dias depois, perdi o olfato e o paladar.

A minha chefia sabia da minha situação, mas não procurou saber se eu estava infectada. Também não fui impossibilitada de trabalhar. Cheguei a pensar em fazer teste, mas o acesso não é fácil.

Não houve nenhum impacto no funcionamento do hospital após a morte do Jorge. A gente até esperava que a direção fosse se manifestar. Mas nem isso aconteceu. Não sabia nem quem era a diretora do hospital. Precisei pesquisar na internet para descobrir.

Não percebemos uma preocupação dos gestores com a vida da gente. Não somos um número. O Jorge não é um número nas estatísticas de mortes por coronavírus. Estamos completamente abandonados

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Suspeita de foco de contágio

No CTI [Centro de Tratamento Intensivo] do hospital onde eu trabalho, chega todo o tipo de paciente. Bandido baleado, idoso com fêmur quebrado, pessoas com pneumonia, AVC, acidente de trânsito...

É um CTI geral, aberto para a população. Lá, ocorreram três mortes com suspeita de covid e ainda tem uma paciente entubada, com os sintomas da doença.

O que chamou a atenção foi que os pacientes estavam em situações muito atípicas, com evolução para infecção respiratória. Um deles, por exemplo, caiu de uma escada. Outro teve acidente de carro. No primeiro caso, uma jovem com menos de 30 anos teve uma síndrome respiratória aguda e morreu no mesmo dia.

Foi quando deu um estalo. Aí, começamos a usar EPI [equipamento de proteção individual]. Mas por conta própria.

O médico que entubou fez a coleta para o teste. Mas, até hoje, o resultado não foi liberado.

Fica a dúvida: são os profissionais que estão contaminando os pacientes ou os pacientes que estão contaminando os profissionais?

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Na linha de frente sem proteção contra a covid-19

Funcionários com comorbidade não estão sendo afastados. A não ser que eles procurem o afastamento. No quadro de funcionários, temos idosos, hipertensos, obesos, asmáticos. Muitos querem continuar trabalhando pela questão financeira —se forem afastados, perdem os benefícios. Mas também há aqueles que acham que é só um resfriado.

Aí, fica todo mundo na linha de frente sem os equipamentos necessários para garantir a segurança do profissional de saúde.

Só temos aquele capote de pano e de TNT, mas a determinação do Ministério de Saúde é que seja usado o capote impermeável, que não permite que passe nenhum tipo de líquido do paciente para o profissional de saúde.

Nem o uniforme que eu uso foi fornecido pelo hospital. Cerca de cem profissionais que atuam no CTI se juntaram há um ano para mandar fazer uma encomenda de uniformes com uma costureira.

Mandamos costurar o emblema do hospital na manga e o nome do profissional bordado na parte da frente. Cada profissional pagou R$ 130 do próprio bolso para ter um uniforme de trabalho em boas condições.

Em um plantão, depois de perceber que eu estava com sintomas compatíveis com os de covid, me recusei a trabalhar se não recebesse a máscara N-95, indicada para a proteção das vias respiratórias.

Cerca de 20 minutos depois, a supervisora apareceu com um saco de máscaras desse tipo. Até então, eu estava trabalhando com as máscaras descartáveis, que não garantem uma proteção adequada.

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Mesmo com diabetes, Jorge atuava na ala para covid

Temos um protocolo. O paciente com suspeita de ter contraído a doença vai para uma emergência, que foi transformada em um setor de covid há duas semanas. Era onde o Jorge trabalhava.

Ele não poderia estar lá, porque tinha várias comorbidades. Tinha diabetes, pressão alta, hipertensão. Estava no grupo de risco. O Jorge teve que pedir para sair daquela ala porque tinha medo. Mas ele já estava infectado. Logo teve falta de ar e precisou ser afastado.

O hospital deveria fazer triagem dos profissionais do grupo de risco para montar o setor de covid. Se isso tivesse sido feito, talvez o nosso colega ainda estivesse vivo

Ainda guardo comigo a lembrança da última vez que vi o Jorge. Eu estava saindo do plantão e ele iria começar a trabalhar. Ele estava debruçado no balcão, conversando com um colega.

O Jorge era um cara muito querido. Chamava todo mundo de 'chuchu'. Estava sempre contando piadas e de zoação, fazendo pegadinhas com os colegas. Às vezes, anunciava o nome de uma pessoa que não existia.

Uma vez, uns pacientes que sofreram acidente estavam sendo levados para o centro cirúrgico. Aí, ele disse para os residentes de enfermagem que eles seriam cortados da cintura para baixo. Os residentes ficaram com aquela cara de espanto. O Jorge começou a rir e o pessoal percebeu que era brincadeira. Ele era um cara que tentava levar alegria naqueles dias difíceis que fazem parte da rotina de um hospital.

O que diz a Prefeitura do Rio

A Prefeitura do Rio de Janeiro diz que irá implantar centros de testagem de covid-19 para os profissionais da rede pública. Cerca de 30 dias após a recomendação de quarentena no Rio, a administração municipal não informa, contudo, quando esses centros começarão a funcionar.

A administração informa que não há investigação no Lourenço Jorge relacionada à morte do técnico de enfermagem, apesar do forte indício de ele ter contraído a doença na unidade de saúde. "A investigação de óbito é feita sempre na unidade em que o paciente faleceu", explicou, em nota. Jorge morreu em um hospital particular em Campo Grande, zona oeste do Rio.

A Prefeitura do Rio contesta a versão de profissionais da área de saúde que relatam falta de EPIs nas unidades. Além de Elaine Sales, outros profissionais que atuam no hospital também se queixaram ao UOL da escassez de material de proteção.

A prefeitura citou a compra de 3 milhões de máscaras, óculos e outros itens de proteção individual, que só foi anunciada na última terça-feira (14) em entrevista coletiva do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos). "Outras 1,1 milhão de máscaras N95 foram adquiridas no mercado nacional, além de 460 mil capotes, disponíveis a partir da próxima semana", anunciou.

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