Gateira desafia as mães

Parquinho fechado com areia contaminada por fezes animais não impede engenheira de alimentar 150 bichos

Decio Galina Colaboração para o UOL, em São Paulo Lucas Seixas/UOL

Ela não namora ("nunca tive um relacionamento sério; não penso em ter filhos, já que o planeta em breve não terá como alimentar tanta gente"), não viaja ("há pelo menos 15 anos não sei o que é ter férias"), não se importa com quase nada que tire o foco de sua razão de viver: alimentar e cuidar de dezenas de gatos que perambulam soltos no parque da Aclimação (zona sul de São Paulo).

Diariamente, inclusive aos fins de semana, faça chuva ou faça sol, das 19h às 22h, a engenheira civil paulistana Jacy Lins espalha 8 kg de ração em dez pontos do parque para cerca de 80 gatos. "Como ele fecha às 20h, eu continuo meu trabalho pelos arredores, onde encontro mais uns 80 gatos."

O parque estar fechado, no entanto, nem sempre afasta Jacy da lida gateira. "Já teve uma véspera de Natal que fecharam o parque às 18h. Eu estava chegando do trabalho e não me deixaram entrar. Fiquei desesperada para alimentar os gatos, pulei o portão pelos fundos quando os guardas estavam concentrados na frente. Perto da meia-noite, para evitar os guardas na ronda, saí pelo parque deserto para distribuir a ração."

"No Réveillon do mesmo ano, repeti [a ação], pois, com os fogos, eles ficam assustadíssimos. Foi um negócio de louco. [Os gatos] vieram para baixo de mim, atrás de refúgio. Nem na ocasião de um blecaute deixei de realizar meu trabalho. Pulei a grade e uma amiga do lado de fora me dava as coisas. Como não usei lanterna pra não chamar atenção dos guardas, ficava levando tombos: não via as árvores e os galhos caídos com a tempestade."

Lucas Seixas/UOL
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Se a população felina não tem do que reclamar da atenção recebida por Jacy e o grupo de outras 11 mulheres que a auxiliam nessa atividade, os humanos --principalmente os que têm filhos-- estão revoltados desde setembro do ano passado com a interdição de três parquinhos infantis com tanque de areia.

O conselho gestor do parque da Aclimação pediu análise da areia e da terra dos playgrounds dos portões 4 e 5 e do Recanto do Saci. O motivo era o grande número de gatos domésticos que costumam acessar essas áreas internas do parque para transitar e realizar suas necessidades fisiológicas.

O pedido gerou um relatório técnico de vistoria da Secretária Municipal do Verde e do Meio Ambiente. Laudos emitidos pela Divisão de Vigilância de Zoonoses relataram que as três áreas de recreação estão repletas de parasitas e fungos.

O perigo da transmissão de doenças como a toxocaríase (que atinge principalmente crianças pequenas que colocam terra contaminada por fezes na boca e que provoca febre, asma e problemas de visão), ascaridíase (a popular lombriga) e dermatofitose --infecções por fungos na pele-- interditou os parquinhos para as crianças. Os gatos continuaram lá. Em fevereiro último foi reaberto o do Recanto do Saci, que, mesmo sem areia, segue exalando odor de urina e fezes animais.

"Ali, a gente tinha uma colônia muito grande de gatos. Diminuiu, mas ainda tem. O gato faz as suas necessidades perto de onde se alimenta, de 15 a 20 minutos depois de comer. Queremos levá-los para longe dos parquinhos. Queremos também colocar casinhas de material reciclável, lugares cobertos para eles se protegerem da chuva e do frio", conta Jacy, enquanto integrantes do movimento Mães e Pais da Aclimação, por outro lado, são a favor da retirada dos gatos do parque, trabalho a ser feito pela prefeitura em parceria com ONGs que promovessem feiras de adoção e campanhas contra o abandono de animais.

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Frequentador do parque há 20 anos, o advogado cearense Erikson Elói Salomoni, 41, é uma das vozes inconformadas com o depósito felino que se transformou o parque da Aclimação. Ele tem dois filhos: um de 21 anos e outro de quase três anos.

Estou perplexo com o que vem ocorrendo com o parque onde tive muitos momentos de alegria com meu primeiro filho. Na época, não era possível imaginar que um dia o parque se tornaria um lugar insalubre para as crianças brincarem por conta de contaminação por meio de fezes de animais abandonados. O mau cheiro é percebido principalmente nos parquinhos infantis
Erikson Elói Salomoni, advogado

Salomoni vai além e fala sobre outro tipo de público frequentador. "Adultos fazem piqueniques no entorno do parque sem se atentarem ao risco de sua saúde. Há dejetos de gatos por todos os lados do parque, inclusive no local onde é mais procurado para piquenique. Triste ver um parque, que seria para o lazer e recreação, se transformar em um local de abandono de gatos, que hoje passam de cem. Gostaria de ver uma solução para retirar os gatos do local, mas a prefeitura ignora os fatos."

A prefeitura não ignora os fatos --ela simplesmente concorda e autoriza que as gateiras continuem o seu trabalho de alimentar os animais, limitando o uso saudável do parque pelas crianças. Por meio de sua assessoria de imprensa, a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente enviou uma nota para a reportagem do UOL. A pasta confirma uma "colônia com cerca de 80 gatos abandonados que são observados pelas protetoras do bairro", autorizadas pela secretaria a entrar para alimentá-los e ajudar o Centro de Controle de Zoonoses a "capturá-los para castração e vermifugação, garantindo assim o controle populacional no parque".

"A Coordenadoria de Vigilância em Saúde (Covisa) orientou o Conselho Gestor do Parque quanto à manutenção e limpeza correta da areia e reforçou a necessidade da troca sempre que parasitas viáveis sejam localizados. Também houve orientação aos munícipes envolvidos com o trato destes animais para que eles estabelecessem horários e pontos fixos de alimentação", diz a nota.

"A prefeitura autorizar o trabalho dessas gateiras é um absurdo, uma falta completa de bom senso. É justamente por causa disso que o parque da Aclimação está se transformando em um ponto de abandono de gatos", diz a naturóloga paulistana Giovanna Carnetti, 26, que morava na Penha e, há um ano e meio, mudou com o marido e o filho de três anos para a Aclimação para poder desfrutar do parque.

"Eu e outros frequentadores chegamos a ver um homem abandonando um gato. Fomos atrás dele e ele disse que estava saindo de São Paulo e sabia que, se deixasse o animal ali, ele seria pelo menos alimentado."

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"Quero o melhor para eles"

Giovanna não precisou de muito tempo na vizinhança para entender a gravidade da situação dos parquinhos antes da interdição no ano passado. "Meu filho estava cavando no tanque de areia e achou um cocô de gato. Depois, pisou em outro. Começamos a falar com outros pais e vimos que tinha algo errado ali. A gente se organizou e passou a frequentar as reuniões de conselho do parque, onde as gateiras já estão faz tempo."

Em uma dessas reuniões, Giovanna ficou impressionada com a reação de uma gateira e resolveu não participar mais.

"Já que elas são autorizadas a alimentar os gatos, sugeri que elas ao menos usassem alguma identificação, um colete, algo assim. Se não há isso, qualquer um pode chegar e começar a espalhar comida para gatos. Aí, começou um bate-boca que me chocou.

Elas têm um comportamento agressivo, pensam que os gatos são delas e, na verdade, dificultam qualquer tentativa de adoção
Giovanna Carnetti, naturóloga

A frequentadora diz que, com a população cada vez maior de gatos e a falta de fiscalização da prefeitura, não são apenas as crianças que estão rareando --os saruês e os pássaros do parque também estão sumindo. "Já chegaram a filmar os gatos atacando e comendo outros animais no parque."

O que mais assustou Giovanna foi o dia que ela, passeando com o filho no parque, teria sido abordada por uma gateira. "Ela me disse: 'A gente vai transformar o parque da Aclimação no parque dos gatos e nada vai nos impedir'." Giovanna diz não ter nada contra gatos --pelo contrário. "O fato de querer que eles sejam adotados e tenham uma casa mostra que quero o melhor para eles. Mesmo que tenham comida no parque, não quer dizer que sejam bem tratados aqui."

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Sonhos felinos e repetitivos

O trabalho de forma mais intensiva já dura 15 anos. Uma colaboradora do grupo tem arrecadado dinheiro com os colegas do escritório para financiar a compra de ração premium, sem corante.

Antes de mudar para a Aclimação, Jacy passou parte da infância no bairro Pedreira e morou também em Diadema (Grande São Pauo). Chegou ao bairro quando tinha seus 18 anos.

"Meu pai era professor e pastor evangélico da igreja que fundou no quintal de casa, a Arca da Aliança. Ele não gostava de bicho em casa. Minha mãe gostava. Sempre tive pelo menos um gato. Eu era daquelas crianças que não podia ver bicho perdido na rua que levava pra casa. Não era paixão só por gato. Tinha coelho, tartaruga, galo, pato, marreco, porquinho-da-índia, cachorro. Deixava tudo escondido em um terreno vazio ao lado de casa, para o meu pai não ver."

Estava em frangalhos quando trocou o entorno de São Paulo pelo bairro da Aclimação. Mudou de ares principalmente para superar um baque.

Eu tinha 23 gatos. E os vizinhos envenenaram meus 23 gatos. Foi muito difícil pra mim. Fiquei traumatizada
Jacy Lins, gateira

Vivendo nos arredores do parque há mais de 20 anos, atualmente Jacy mora em uma edícula, nos fundos da casa de uma amiga, conhecida na lida diária com os gatos do bairro. Prefere não revelar exatamente quantos gatos têm em casa. "Duas coisas você não pode perguntar para uma mulher: quantos anos ela tem e quantos gatos tem em casa", diz a engenheira. Mas afirma que, somando os bichos das duas moradoras do terreno, são mais de 20 gatos.

Os cinco primeiros anos de Jacy no novo bairro ficaram marcados como o único período da vida em que ela não ficou rodeada por gatos. Estava de luto pela tragédia do envenenamento.

"Prometi para mim que não teria mais gatos para evitar novos sofrimentos. Até que depois desse tempo todo achei uma gatinha quase morta dentro de uma lixeira. Aquilo me tocou muito. Resolvi socorrer, levei no veterinário, comecei a cuidar dela escondida no meu trabalho [o primeiro emprego], num depósito, por quase um ano. Até que ela subiu no forro, derrubou o forro, um funcionário deu uma vassourada nela, eu fui para cima dele... Acabei saindo do escritório, e levei a gata para casa", recorda a engenheira, que hoje vive de trabalhos esporádicos de cálculo estrutural e detalhamento de estruturas de concreto.

Dia desses, andando por uma dessas alamedas lindas do parque da Aclimação, Jacy reconheceu uma imagem que costumava ver de olhos fechados, sonhando.

"Já tive sonhos repetitivos, há muito tempo, em uma época que nem pensava em fazer esse trabalho. Era um lugar cheio de árvores. Um monte de gatos me seguia --pensei que fosse o céu dos meus gatos envenenados, um lugar arborizado para eles, depois de morrer. Até que reconheci o cenário do sonho. Era o parque. Foi uma espécie de premonição."

Lucas Seixas/UOL Lucas Seixas/UOL
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