Um ano sob sanção

Irã gasta reservas para amenizar efeitos de medidas impostas pelos EUA, mas população sofre com inflação

Renato Machado Colaboração para o UOL, em Teerã ATTA KENARE/AFP

Um ano após a decisão dos Estados Unidos de se retirar unilateralmente do acordo nuclear, o governo iraniano luta contra o isolamento e gasta suas reservas em dólares para amenizar os efeitos das sanções econômicas.

No entanto, elas continuam a atingir a população, que sente no seu cotidiano os efeitos das medidas impostas pelos norte-americanos. Além disso, dúvidas surgem a respeito de quanto mais o país consegue aguentar e se --ou quando-- uma guerra vai estourar.

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Indicadores econômicos recentes dão uma dimensão do impacto das sanções. O PIB (Produto Interno Bruto) do país se contraiu 3,8% nos três primeiros trimestres --o ano no calendário iraniano começa em abril. A inflação oficial, com números presumivelmente maquiados para melhor, alcançou 34% em um ano.

A alta nos preços leva a população a uma corrida para comprar dólares, como forma de garantia de renda, o que contribui ainda mais para a depreciação da moeda local, o rial.

Em abril do ano passado, um dólar equivalia a 42 mil rials. Ao longo da última semana, a moeda americana esteve cotada na casa de 140 mil rials, mesmo com o governo iraniano usando suas reservas para segurar o valor do rial.

Muitos analistas iranianos, no entanto, afirmam que o período de maior turbulência está ficando para trás e que as sanções ao Irã falharam em obter resultados políticos. "Apenas podemos dizer que as sanções foram bem-sucedidas se considerarmos que o objetivo dos americanos era fazer a população iraniana sofrer", afirma Seyed Mohammad Marandi, professor da Universidade de Teerã e considerado um dos porta-vozes internacionais do regime. "Mas as sanções não tiveram sucesso em fazer o Irã abrir mão de sua soberania."

Marandi afirma que o Irã vem sofrendo ao longo deste último ano, mas, como aconteceu durante as sanções anteriores, a economia vai se reestruturar nos próximos meses e se adaptar à nova realidade. Ele afirma que o país continuará a vender petróleo, mesmo com o cancelamento das licenças, mas grande parte das operações serão feitas em alto-mar, a um preço abaixo do mercado. O acadêmico descarta um colapso, como muitos no Ocidente têm previsto.

"A principal diferença entre essas sanções e as anteriores é que agora os Estados Unidos estão sozinhos. Eles não têm o apoio de outros países e assim estão enfurecendo seus aliados que sofrem com as medidas contra o Irã. E isso em algum momento vai se voltar contra eles próprios", diz ele.

Nas ruas de Teerã, um clima de desconfiança e incerteza em relação ao futuro prevalece. Postos de gasolina estão constantemente lotados. Motoristas abastecem sempre que possível por conta dos rumores de que o governo pode limitar a quantidade de combustível com preço subsidiado --atualmente o litro da gasolina custa 10 mil rials (0,07 dólar).

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Casas de câmbio também continuam lotadas, mesmo já tendo passado a temporada de feriados e viagens. "Tem que comprar dólar porque vai passar de 200 mil rials", afirma Houssein, vendedor de 26 anos que não quis falar o sobrenome.

Os que não conseguem poupar ou investir apenas sentem no dia a dia a perda do seu poder de compra. "No ano passado, o ash [prato iraniano vendido nas ruas] custava 40 mil rials e agora está em 80 mil", afirma Ali Reza Maadi, 32.

Além da alta nos preços, os últimos dias foram marcados pelo desabastecimento de alguns produtos essenciais. O principal deles é o açúcar, que desapareceu das prateleiras de supermercados e dos bazares das regiões central e sul de Teerã. A carência do produto acontece mesmo após o Irã ter registrado uma produção recorde no ano passado e ter passado a comprar desse produto da Índia em fevereiro, em troca de petróleo.

Por isso, levantou-se a hipótese de que a população estaria estocando o produto, com receio de altas ainda maiores nos preços e uma possível guerra. O governo passou então a veicular propagandas em rádio e televisão desestimulando a estocagem de alimentos.

A carne custava 520 mil rials o quilo e hoje sai por 1,9 milhão. Minha filha casou faz duas semanas e as coisas que compramos tiveram aumento de preço em questão de semanas. Um aspirador custava 18 milhões de rials e agora está em 28 milhões

Zélia de Oliveira Ribeiro, brasileira que vive desde 1990 em Teerã

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Um viajante que desembarca em Teerã teria dificuldades para perceber que aquela é a capital de um país sob sanções econômicas da principal potência mundial, os Estados Unidos.

No entanto, um olhar atento ao dia a dia da cidade dos últimos 365 dias consegue detectar mudanças na sua paisagem. Lojas e grandes empresas estão fechadas, outdoors mostram exclusivamente produtos e marcas iranianos, além de canteiros de obras sem nenhum trabalhador.

Logo após a entrada em vigor das sanções, lojas de marcas estrangeiras retiraram os logotipos de suas fachadas, como as vitrines de roupas de marcas esportivas americanas e europeias, moda atual entre jovens iranianos.

Nos principais shoppings da cidade, avisos em folhas de tamanho A4 afixados informavam que, por conta das sanções, a marca não poderia ser exibida, mas que as lojas poderiam "comprovar que os produtos eram originais". Muitos desses estabelecimentos, no entanto, fecharam nos meses que se seguiram.

Os que restaram abertos já não se mostram organizados, com apenas caixas de tênis espalhadas por todos os lados, como um grande "saldão". Os vendedores afirmam que se trata apenas de promoção para acabar com estoque antigo, antes de receberem novas coleções. No entanto, essas "promoções" se arrastam por meses.

Nos melhores supermercados da cidade, produtos industrializados de marcas ocidentais, como chocolates, cereais, fraldas e produtos de higiene foram pouco a pouco desaparecendo das prateleiras. No lugar de Nestlé e Lindt, por exemplo, estão à venda os chocolates iranianos Merdas e Parmida.

Outros alimentos importados --como a carne brasileira-- começam a se tornar artigo raro, embora as sanções comerciais não se apliquem a esse tipo de produto. Afetam o mercado, além das sanções americanas, as medidas baixadas pelo próprio governo iraniano para restringir importação de bens por conta das dificuldades de obter reservas em moeda estrangeira.

Os iranianos mais abastados também enfrentam dificuldades durante suas tradicionais viagens para a Europa. Há pouco mais de um ano, o aeroporto internacional Imã Khomeini mantinha voos diários para as principais cidades do Velho Continente, como Paris, Londres, Amsterdã, Roma e Berlim. Agora são necessárias escalas, muitas vezes longas, em países vizinhos, como Turquia e Emirados Árabes Unidos.

No último feriado prolongado de três semanas de Ano-Novo (chamado Nowruz), entre março e abril, o governo estimou que 3 milhões de iranianos deixaram de viajar para o exterior. Em contrapartida, cresceu em 20% o número de viagens e hospedagens internas, em relação ao ano anterior.

A camada mais pobre da população, no entanto, não conta com tantas opções e sofre com a alta dos preços. "Os preços dos alimentos aumentaram 80%, quase dobraram. A inflação é muito maior do que dizem", afirma Fatemeh (que não quis informar o sobrenome), que fazia compras no Bazar do Tajrish, no norte de Teerã. Além da alta dos preços, alguns produtos essenciais começam a faltar nas prateleiras dos supermercados e bazares.

Sem ter garantias de que seu dinheiro amanhã terá o mesmo poder de compra de hoje, os iranianos optam por estocar alimentos. A prática foi apontada pelo governo como um dos motivos da falta de açúcar no comércio local.

A outra estratégia da população é investir em ouro ou em moeda estrangeira, principalmente dólar e euro. Por isso é comum pequenas multidões se aglomerarem na porta das casas de câmbio para olhar o painel eletrônico com as cotações, em busca do melhor dia para fazer negócio.

Outro dado econômico bastante questionado é o desemprego. O governo informou que o índice cresceu apenas 0,1%. No entanto, além da saída das fábricas estrangeiras, o setor de construção civil parece ter sido duramente atingido. No norte de Teerã, em bairros como Velenjak e Niavaran, é possível ver sinais do "boom" que teve início nos últimos anos, com canteiros de construção de grandes prédios e guindastes gigantes posicionados. No entanto, melancolicamente, muitas dessas obras estão totalmente paralisadas.

Resta a muitos desses desempregados o trabalho como motorista de Snapp (o Uber iraniano), serviço já considerado supersaturado na capital, ou fazendo entregas.

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Além de conviver com as sanções econômicas impostas pela maior potência mundial, a população iraniana ainda precisa conviver com a escalada da tensão política entre seu governo e o norte-americano.

O jogo de ameaças dos dois lados, em determinados momentos, parece arrefecer e rumar para um apaziguamento, mas logo em seguida ressurge e sinaliza que uma guerra é possível. Basta para isso uma declaração dos comandantes militares iranianos ou um tuíte do presidente dos EUA, Donald Trump.

Trump já declarou, por exemplo, que que o Irã encararia um "fim oficial", o que levou os líderes iranianos a apontaram um tom "genocida" na fala. Mais importante do que a retórica, o governo dos Estados Unidos deslocou um porta-aviões para a região do Golfo Pérsico.

Do lado iraniano, o governo respondeu com o anúncio de que deixaria de cumprir partes do acordo nuclear e deu um prazo de 60 dias para que os europeus viabilizassem trocas comerciais, mantendo, assim, vivo o acordo.

As iniciativas fazem parte do que especialistas em Teerã apontam como uma posição mais assertiva dos iranianos. "O Irã foi muito paciente até o momento, aguardando a reação da comunidade internacional. Agora deve passar a ter uma posição mais assertiva, mais robusta, principalmente aumentando a pressão contra a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, que apostam na aliança com os americanos", afirma Sayed Mohammad Marandi, professor da Universidade de Teerã.

Enquanto a retórica continua, a população iraniana e os estrangeiros que vivem no país se dividem entre o receio e a indiferença em relação à crise. "Eu não me desespero neste momento, porque já vivemos muitas crises anteriores e que acabaram não dando em nada. Só fica na conversa mesmo", afirma a brasileira Zélia de Oliveira Ribeiro, 50, casada com um iraniano e que vive em Teerã desde 1990.

A opinião de que não haverá um confronto militar leva alguns a brincarem: "Seria bom ter uma guerra para derrubar o regime, acabar com a obrigação de usar o véu", afirma uma estudante. A garota confronta os costumes e a polícia moral, ao usar o "hijab" perto da nuca, deixando à mostra o cabelo rosa.

Mas, apesar da coragem em contestar as regras locais, não quis se arriscar a revelar o nome para a reportagem. "É brincadeira. Claro que ninguém quer guerra, até porque o regime pode sair ainda mais forte", completa.

Por outro lado, os iranianos mais velhos, que viveram o período de racionamento e violência da Guerra Irã-Iraque, tendem a ser mais pessimistas.

O dia a dia em Teerã não parece indicar risco de guerra. Não há militares ou veículos das Forças Armadas nas ruas, nem uma quantidade acima do normal de helicópteros sobrevoando a cidade.

Parece que a pressão externa e o papel dos Estados Unidos estão fortalecendo a unidade e o apoio da população ao sistema em vez de levar a população a protestar

Luciano Zaccara, professor da Universidade do Qatar

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Em 8 de maio do ano passado, o presidente norte-americano, Donald Trump, anunciou a retirada do seu país do JCPOA, sigla que designa o acordo nuclear assinado por Estados Unidos, Irã, União Europeia, Reino Unido, Alemanha, França, Rússia e China.

Em território iraniano, a medida já era esperada desde que o republicano assumiu a Casa Branca, embora nem essa perspectiva tenha preparado a população e o governo para o que viria.

Seguiram-se ao anúncio rodadas de sanções econômicas ao Irã e ameaça às nações que mantivessem laços comerciais e financeiros com o país do Golfo Pérsico. A mais recente, em vigor há 40 dias, praticamente fechou as torneiras da exportação de petróleo iraniana, ao cancelar as licenças que seis aliados dos Estados Unidos mantinham para comprar o recurso natural do Irã.

Mesmo antes do início das sanções, empresas estrangeiras começaram a sair do Irã, algumas deixando para trás investimentos bilionários --o caso mais notório foi o da petroleira francesa Total.

Também fecharam suas fábricas a montadora de automóveis Peugeot e a empresa alemã Siemens. Companhias aéreas como a British Airlines, a Air France e a KLM encerraram suas atividades no Irã.

Isso sem contar as empresas que só exportavam produtos ao país e deixaram de vender alimentos, roupas, produtos eletrônicos e remédios.

"As novas sanções chegaram em um momento ruim para a economia iraniana, porque os efeitos positivos do acordo ainda não eram visíveis quando o Trump decidiu se retirar dele", afirma Luciano Zaccara, professor da Universidade do Qatar e especialista em questões iranianas.

Ele afirma que a economia iraniana vinha apresentando melhora nos últimos anos, mas não houve tempo suficiente para que a indústria petrolífera e de gás natural se recuperasse totalmente. Além disso, grandes contratos comerciais --como os assinados com Boeing e Airbus-- tiveram pouco tempo de vigência antes de serem cancelados.

"As sanções vão afetar, sim, a economia. Mas vale dizer que a economia iraniana está sobrevivendo há décadas com sanções e isolamento e essa nova rodada de medidas não apresentou nada de novo. E os Estados Unidos estão pressionando unilateralmente, sem apoio da comunidade internacional. Precisamos esperar para ver como China, Índia, Japão e outros compradores de petróleo iraniano vão reagir. Mas, em resumo, a economia não vai entrar em colapso", completa Zaccara.

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