Um dos municípios da Baixada mais afastados do Rio, Itaguaí tem uma rotina típica de cidade pequena. As pessoas usam a bicicleta como meio de transporte em uma de suas principais ruas. Lá, pouco se escuta o barulho de buzinas de veículos, sempre em baixa velocidade. Os motoristas param antes da faixa de segurança, dando preferência aos pedestres.
A poucos metros dali, uma mensagem em tinta preta no muro dá indícios da existência de um poder paralelo: "Proibido roubo na favela". Naquele ambiente pacato, vans costumam reduzir a velocidade nos locais de maior movimento, com um sujeito projetando o corpo para fora da porta, à procura de passageiros.
Contrastes entre a aparente calmaria local e a ação do grupo chefiado pelo ex-PM Carlos Eduardo Benevides Gomes, um dos milicianos mais procurados do Rio.
Segundo as autoridades, o transporte alternativo é explorado pela milícia na região há pelo menos 15 anos. Em 2006, uma decisão judicial obrigou a prefeitura a fazer a licitação desse tipo de transporte para regularizá-lo. Em 2013, o governo municipal passou a responder pelo crime de responsabilidade por não ter cumprido a determinação. Mas a prefeitura conseguiu impedir na Justiça a obrigatoriedade de licitar as cooperativas.
Um cenário propício para que os paramilitares ligados ao grupo criminoso da zona oeste do Rio seguissem explorando o serviço e intensificassem a sua ação no município nos últimos anos, diz o MP-RJ.
A milícia é administrada como uma empresa, com hierarquia, troca de turnos e especializações. Há equipes que integram o braço armado. Outras são especializadas na gestão do comércio e condomínios. O grupo que atua em Itaguaí funciona como uma franquia autorizada a usar o nome da milícia da zona oeste do Rio
Promotor Jorge Luiz Furquim, do Gaeco
A ampla área rural favorece a atuação dos paramilitares em Itaguaí. Há cerca de dois anos, um sítio na região foi usado como esconderijo para o miliciano Wellington da Silva Braga, o Ecko, chefão da "Firma", segundo informações da Polícia Civil e do MP-RJ.
A geografia local também já foi explorada para a ocultação de cadáveres em cemitérios clandestinos e para estocar armas de grosso calibre, apontam investigações.
Em agosto de 2018, seis corpos foram encontrados em um terreno baldio a apenas cinco quilômetros da área central da cidade. De acordo com levantamento feito pelo MP-RJ, há mais de 30 pessoas desaparecidas no município entre 2014 e 2016.
Quando anoitece, milicianos armados e com facas na cintura surgem nas vias da cidade para fazer abordagens nos veículos. "Os moradores não estavam acostumados com esse tipo de situação. Antes, as pessoas podiam andar tranquilamente. Agora, a população passou a ter medo de sair de casa à noite", relatou um morador, que pediu para não ser identificado.
Apoio da PM e franquia do "Bonde do Ecko"
A Polícia Civil e o MP-RJ investigam a extorsão da milícia a todo o tipo de comércio em Itaguaí. Nos últimos meses, um empresário entrou ofegante na delegacia da cidade. Disse ter recebido uma ligação com uma ameaça e uma espécie de cartão de visitas da milícia.
Do outro lado da linha, um homem exigiu pagamento de taxa de segurança e disse ser do "Bonde do Ecko".
"O miliciano ainda disse que, se o comerciante não pagasse, iria sofrer as consequências. Ele veio à delegacia para denunciar. Mas não teve coragem de registrar a ocorrência. Isso é muito comum quando a milícia está envolvida. Qualquer autônomo pode ser vítima de extorsão da milícia", afirmou o delegado Marcos Santana Gomes, titular da 50ª DP (Itaguaí).
Para Jorge Luiz Furquim, promotor do Gaeco, a expansão da milícia em Itaguaí só é possível por causa do apoio de milicianos de farda. "Existe sempre um acordo prévio com a PM. Antes de invadir um território, fazem um contato prévio com o policiamento local. Os milicianos entram como se fossem integrantes de forças especiais. Passam nos comércios para dizer que a bagunça acabou. Depois, fazem atrocidades. Matam algumas pessoas de forma aleatória para se impor pelo medo".
A origem do crime
Itaguaí faz parte dos primórdios da integração entre a milícia da zona oeste do Rio e a Baixada. E, desde o início, essa atuação contou com a participação de policiais e ex-policiais.
Em 2008, o hoje ex-PM Luciano Guinâncio Guimarães foi denunciado pela atuação no município. Ele é filho de Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, um dos primeiros chefões da milícia. Condenado a 38 anos e um mês pelos crimes de extorsão, homicídio qualificado e organização criminosa, Luciano cumpre pena no regime semiaberto desde maio de 2019.
Em maio de 2016, o ex-policial militar Julio César Ferraz de Oliveira, que chefiava a milícia local, foi preso em uma operação de fiscalização da PRF (Polícia Rodoviária Federal), na Rodovia Rio-Santos, acusado de crimes como homicídio, lesão corporal e extorsão.
Com a captura dele, Carlos Eduardo Benevides Gomes, outro miliciano com passagem pela PM-RJ, passou a chefiar o grupo paramilitar de Itaguaí.
Ele integrou uma lista de 48 denunciados pelo MP-RJ por integrar a organização criminosa.
A falsa sensação de segurança no QG de Benevides
No bairro Chaperó, reduto da milícia em uma região afastada de Itaguaí, paramilitares exploram os moradores de condomínios do programa habitacional "Minha Casa Minha Vida", do governo federal. Para quem circula por lá, há uma falsa sensação de segurança, já que os roubos são proibidos pela milícia. Quem quebrar a regra, paga com a vida.
Nos últimos meses, um adolescente foi assassinado por causa de uma foto, onde aparecia fazendo um sinal de apologia a uma facção criminosa do Rio. Para o tribunal da milícia, a pena também é de morte para o uso de drogas ou o assédio a mulheres casadas.