Irmãs de sangue

No PSOL, Talíria Petrone provoca até a esquerda no Congresso, impulsionada pela memória da amiga Marielle

Diego Toledo Colaboração para o UOL, em São Paulo Pedro Ladeira/Folhapress

Em dois anos, a professora Talíria Petrone (PSOL-RJ) viu sua votação decolar de pouco mais de 5 mil votos, quando foi eleita a vereadora mais votada de Niterói em 2016, para mais de 100 mil, ao ser eleita deputada federal no ano passado.

Mas, na chegada ao Congresso, Talíria representava uma minoria entre os parlamentares eleitos para renovar a Câmara dos Deputados - a maioria havia sido eleita no embalo da onda conservadora liderada por Jair Bolsonaro.

A deputada do PSOL claramente pertence a outro campo político e se elegeu com base na defesa do legado de Marielle Franco, vereadora assassinada no ano passado e que se tornou símbolo de feminismo, defesa dos direitos LGBT e luta contra a violência das mílicias no Rio.

"A esquerda precisa se reorganizar", afirma Talíria, em entrevista ao UOL. "É preciso olhar onde erramos no último período. Um afastamento da base, da vida concreta, que muitos setores fizeram, abriu espaço para o crescimento de um setor conservador."

A deputada conheceu Marielle na virada da última década, na favela da Maré, onde ela morava e Talíria dava aulas em um curso pré-vestibular. As duas ficaram amigas e, juntas, decidiram se candidatar a vereadoras no ano seguinte.

Ambas campanhas saíram vitoriosas: Marielle recebeu mais de 45 mil votos no Rio e, com o slogan "por uma Niterói negra, popular e feminista", Talíria foi eleita em sua cidade.

"A gente era um grupo pequeno de mulheres, sem dinheiro, e que circulava pela cidade", recorda a deputada. "Essa aproximação da política no território era um pouco do que as pessoas queriam, queriam se ver representadas por alguém que parecesse com elas, que não fosse a expressão da velha política."

Reprodução

Ameaças de morte e a "herança" de Marielle

Depois de eleita como uma das duas únicas mulheres na Câmara Municipal de Niterói, Talíria passou a ser alvo de ataques racistas e ameaças de morte.

"O nosso corpo de mulher, em especial de mulher negra, feminista, é um corpo estranho na política institucional", afirma. "No início, as ameaças aconteciam muito nas redes sociais. Depois da execução da Marielle, a gente acabou entendendo que o assassinato era algo que estava muito perto de nós."

Em março do ano passado, Marielle Franco foi assassinada com quatro tiros, junto com o motorista Anderson Gomes. Dois ex-policiais foram presos um ano depois e apontados como autores do crime, mas as investigações sobre os mandantes e as motivações da execução ainda não foram concluídas.

Com a morte da amiga, Talíria passou a andar com escolta policial, mas as ameaças contra ela não pararam. As mensagens incluem xingamentos e frases como "merece uma 9 mm na nuca" ou "se eu te encontrar, te mato na paulada".

"A minha rotina mudou completamente", diz a deputada. "Sou uma pessoa muito livre, muito da rua, da praça, do boteco. Pra alguém assim, ter que andar com escolta e um carro blindado é uma violência."

Além das ameaças, Talíria também passou a conviver com o rótulo de "herdeira política" de Marielle Franco. Apesar de não aceitar essa definição, a parlamentar reconhece que só decidiu disputar uma vaga no Congresso por causa da morte da amiga.

"Não gosto da ideia de herdeira", afirma. "Entendo que isso esteja construído no imaginário das pessoas, mas a Marielle foi executada. Se alguém herdou o que ela deixou, isso apaga ou invisibiliza a denúncia que é preciso ser feita um ano e meio depois, que é a da execução da Marielle."

"A execução da Marielle fez com que muitas de nós optássemos por ser mais duras no enfrentamento ao sistema", acrescenta.

Eu achava importante ocupar a política nacional depois da morte dela. Foi uma resposta à execução. Perder a Marielle foi perder uma irmã de luta, de vida.

Cleia Viana/ Câmara dos Deputados Cleia Viana/ Câmara dos Deputados

Do vôlei para as salas de aula

Filha de uma professora e de um artista plástico, Talíria Petrone cresceu em uma família de classe média baixa no bairro do Fonseca, na zona norte de Niterói. Quando tinha 18 anos, resolveu trancar a faculdade de História na Uerj para se dedicar a uma vida de atleta como jogadora de vôlei em Portugal.

Da época em que vivia na Ilha do Pico, nos Açores, lembra-se de um episódio marcante. Depois de conquistar um campeonato como capitã da equipe em que jogava, um dirigente do clube se aproximou para dar os parabéns e disse: "Que ótimo! Só falta tomar um banho de leite pra ficar branquinha!"

"Aquilo me soou esquisito, um pouco violento. Eu ainda não tinha uma consciência racial plena. Mas hoje eu entendo que foi muito violento", avalia a deputada.

Na volta ao Brasil, depois de dois anos, Talíria retomou a faculdade e começou a dar aulas na Engenhoca, bairro da periferia de Niterói. Era o início da vida como professora, que, mais tarde, a levaria a São Gonçalo e à Maré.

"Quando eu dei aula pela primeira vez, foi o meu primeiro espaço coletivo político", afirma a parlamentar. "Chegar na sala de aula e perceber que ali dentro se reproduziam tantas violências me fez querer me organizar em um partido político."

Pedro Ladeira/Folhapress

Os embates com o bolsonarismo

Desde o início de sua trajetória como vereadora, Talíria teve um antagonista na carreira política: Carlos Jordy (PSL-RJ), um dos principais nomes do partido de Bolsonaro no Rio. Ambos foram eleitos pela primeira vez para a Câmara de Niterói em 2016 e, dois anos depois, chegaram a Brasília.

Mas, se na primeira eleição dos dois, a candidata do PSOL teve o dobro de votos de seu adversário político em Niterói, os papéis se inverteram dois anos depois, quando foi a vez de Jordy conquistar quase duas vezes mais votos do que Talíria.

Os embates entre os dois costumam expor a diferença de pontos de vista que ilustra o atual momento de polarização no país. Diante desse cenário, a deputada do PSOL diz ver a necessidade de enfrentar "a lógica do ódio" na política, mas afirma que os discursos muito acirrados dificultam o diálogo.

"Eu acredito na radicalidade, mas não na radicalidade da ausência de diálogo", defende Talíria. "Pra mim, a radicalidade é ir na raiz das questões e entender que é preciso afirmar um projeto de Brasil que aponte um outro horizonte, que tenha um modelo de segurança pública que não seja pautado na violência nas periferias."

"Não gosto da ideia da polarização porque isso coloca um campo que acha necessária essa radicalidade como aquele que se opõe ao ódio. Não existe uma polarização ao ódio", acrescenta a deputada. "O ódio tem que ser eliminado da política. É preciso conversar nos marcos da democracia."

AFP AFP

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