Cachoeira corre solto

Os 20 passos da novela judicial de 6 anos que mantém livre o bicheiro condenado a 39 anos de prisão

Eduardo Militão Do UOL, em Brasília
Reprodução/Instagram

Carlos Augusto de Almeida Ramos passa o Réveillon com a esposa, Andressa Mendonça, na virada de 2016 para 2017. A foto vai parar no Instagram, junto com outras, como jantares com amigos em restaurantes, aniversários e outras reuniões de família. Sorrisos pra lá e pra cá como esperado.

É assim que Carlinhos Cachoeira, como é conhecido, responde em liberdade ao principal processo criminal em que já foi condenado -- uma pena de nada menos que 40 anos de cadeia. Hoje, em fins de 2018, segue livre, leve e solto, seis anos depois de receber a primeira sentença da Operação Monte Carlo. Ainda mora em Goiânia, depois de já ter sido preso e solto algumas vezes.

O bicheiro foi condenado em dezembro de 2012 por formação de quadrilha armada, corrupção ativa, desvio de dinheiro (peculato), violação de sigilo funcional e advocacia administrativa. Teria que pagar ainda R$ 3,8 milhões em multas, segundo a sentença do juiz Alderico Rocha.

Cachoeira deveria ir já para a cadeia? Deveria, caso ele fosse julgado em segunda instância e condenado mais uma vez pelo TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região), mas esse julgamento sequer é marcado. E demora... Para o Ministério Público, o caso está “encruado”, expressão do interior do Brasil para indigesto, mal cozido ou indisposto. O UOL mostra abaixo todos os passos dessa verdadeira novela que mantêm o Carlinhos solto. Veja a seguir.

Capítulo I - Cadeia e soltura

  • Condenado e preso (07.dez.2012)

    O juiz da 11ª Vara Federal de Goiânia (GO), Alderico Rocha Santos, condena Cachoeira a 39 anos de cadeia, por formação de quadrilha, corrupção, desvio de dinheiro (peculato), violação de sigilo funcional e advocacia administrativa. Ele havia sido investigado na Operação Monte Carlo, que apurou seu envolvimento com uma máfia de jogos ilegais e construtoras, como a Delta. O bicheiro é preso no mesmo dia.

  • Pé na rua (11.dez.2012)

    Em apenas quatro dias, Cachoeira é solto. Ele consegue uma decisão judicial do então desembargador do TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) Tourinho Neto, hoje aposentado e advogado de vários prefeitos. A partir de então, o bicheiro passa a responder em liberdade ao processo em que foi condenado. Ele se casa no fim de dezembro.

  • Me dá uma chance aí (2013)

    Apesar de solto, Cachoeira ainda responde ao processo. Por isso, ele recorre da condenação do juiz Alderico Rocha ao TRF-1. Os outros sete réus condenados também recorrem.

  • Papelada em Brasília (14.mar.2014)

    Só um ano e três meses depois de ser condenado, os recursos chegam ao TRF-1, em Brasília. O processo será julgado na 3ª Turma do tribunal, que tem três desembargadores. A relatora do caso é a desembargadora Neuza Maria Alves.

Sylvio Sirangelo/TRF4

O que faz um relator?

O relator é a pessoa que mais tem que conhecer um processo criminal num tribunal. Primeiro, esse magistrado precisa ler todo o calhamaço de papéis e mídias. O caso de Cachoeira inclui uma sentença de 510 páginas feita pelo juiz Alderico Rocha, uma coleção de mais de 8 mil grampos telefônicos, com seus respectivos resumos, obtidos pela Polícia Federal na Operação Monte Carlo, os textos escritos pelos advogados de defesa, com mais de 20 questões para tentar anular o processo, e os argumentos finais dos procuradores do Ministério Público. Esse relator é um desembargador. Neste caso, um magistrado da 3ª Turma do TRF-1. Ele precisaria fazer um relatório resumindo tudo isso. Depois, tem que escrever um voto em que daria seu julgamento. Afinal: Cachoeira e os demais réus são culpados ou inocentes? Qual o tamanho do tempo de prisão deles?

Para um julgamento em tribunal acontecer, são necessários três votos: o do relator, o do revisor e o do terceiro desembargador. O voto do revisor é uma segunda análise mais aprofundada do caso. Por isso, o voto do revisor e do relator têm que ficarem prontos e por escritos, antes sessão de julgamento.

  • Troca de relator (25.abr.2014)

    A desembargadora Neuza Alves vira vice-presidente do tribunal e deixa o caso. Todas as tarefas dela passam às mãos do desembargador Mário César Ribeiro, que se torna o novo relator do processo.

  • No gabinete do Mário (27.jul.2015)

    O processo fica no gabinete de Mário César Ribeiro para análise. E por lá fica. Passa-se um ano. Passa-se mais um mês, e isso chama a atenção do Ministério Público.

  • Tá demorando muito! (05.ago.2016)

    O procurador Hélio Telho, do Núcleo de Combate à Corrupção em Goiás, faz uma queixa ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça) contra a demora no julgamento. Começa uma "apuração de morosidade na tramitação do processo" conduzida pelo corregedor do CNJ.

  • Saúde, desembargador (19.jan.2017)

    O desembargador Mário César Ribeiro entra de licença-médica e deixa o caso. Juízes-convocados passam a trabalhar no gabinete dele, substituindo-o como relatores. Uma delas é a juíza Rogéria Maria Debelli.

André Borges/Folhapress

Vida de casado

A empresária Andressa Mendonça anuncia a separação de Carlinhos Cachoeira em setembro de 2015. Mas depois eles voltam a aparecer juntos nas redes sociais.

Capítulo II - O pingue-pongue

  • Dança (28.ago.2017 a 11.out.2017)

    A papelada toda do caso Cachoeira foi parar no gabinete do revisor, o desembargador Ney Bello, para ele fazer seu voto-revisor. Mas uma série de pedidos da Coordenadoria da 3ª Turma faz o processo "dançar" entre o gabinete e a coordenadoria várias vezes, verdadeiro pingue-pongue.

  • O primeiro voto (13.out.2017)

    A juíza Rogéria Debelli, que ocupa o gabinete de Mário César, pede o processo de volta e escreve um voto como relatora do caso Cachoeira. Fica faltando só o voto do revisor para marcar a sessão do julgamento.

  • Novo relator (13.nov.2017)

    Depois que Rogéria Debelli aposenta-se, quem assume o gabinete do desembargador de licença é o juiz convocado Leão Aparecido Alves. Coincidentemente, Leão atuou na mesma 11ª Vara de Goiânia, onde Cachoeira foi condenado

  • Mais pingue-pongue (18.out até 27.nov.2017)

    O processo volta a ser jogado de um lado para o outro, entre o gabinete do revisor, Ney Bello, e a Coordenadoria da 3ª Turma, para tarefas como anexar documentos, por exemplo.

  • A revisão começa (28.nov.2017)

    Depois de exatos três meses, o processo volta para o gabinete de Bello. Só então, ele pode começar a escrever o seu voto-revisor sobre o caso de Cachoeira. Àquela altura, a papelada acumulava 80 volumes de papeis e quatro anexos, chamados de "apensos", com mídias e documentos.

  • O segundo voto (16.fev.2018)

    Ney Bello conclui seu voto como revisor. O voto da relatora Rogéria já estava pronto, que poderia ser usado por Leão. O caso já pode ser julgado em uma sessão da 3ª Turma. Nesse dia, seriam apresentados os dois votos e a desembargadora Mônica Sifuentes daria o seu voto ali mesmo.

Enquanto isso... Mais uma operação

A Operação Saqueador leva Cachoeira à prisão em 30 de junho de 2016. Ele é suspeito de lavar dinheiro do empreiteiro Fernando Cavendish, da Delta Construções. 

Capítulo III - Julgamento interrompido

  • Para tudo (16.fev.2018)

    No mesmo diz em que é solicitado o julgamento do caso, o novo relator, o juiz convocado Leão Aparecido, anuncia que está impedido de julgar esse processo. Só quando o desembargador Mário César voltar de sua longa licença-médica ou quando outro juiz convocado assumisse o gabinete poderia haver julgamento.

  • Tá marcado... (08.jun.2018)

    O presidente da 3ª Turma e revisor do caso, Ney Bello, tenta apressar o processo. Por isso, marca o julgamento de Cachoeira para 24 de julho, por considerar que Leão estará de férias naquela data e, assim, outro magistrado poderia julgar o caso.

  • ... só que não! (11.jun.2018)

    Leão Aparecido pede que tudo seja paralisado. Ele manda ofício ao então corregedor do CNJ João Otávio Noronha avisando que está "impedido para funcionar como relator" do processo de Cachoeira porque afirmou "haver suspeição" dele mesmo no caso. Um dos réus, José Olímpio de Queiroga, foi padrinho de casamento do juiz. Leão diz que "a demora no julgamento é, respeitosamente, razoável".

Documentos do vai-vem

  • Não há nada a fazer? (27.jul.2018)

    Bello informa o CNJ que houve tentativas frustradas de julgar o caso Cachoeira. "Não há nada a fazer no gabinete do revisor", afirma o desembargador. "O voto revisor encontra-se pronto desde fevereiro de 2018, e se o feito [o processo] não foi a julgamento é por inexistência de relator", reclamou.

  • Férias providenciais (Ago-nov.2018)

    Bello e Leão tentam acertar se é possível que o segundo tire férias por apenas um período curto, como uma semana. Com isso, outra pessoa assumiria o caso e o relatório pronto da juíza Rogéria como base do trabalho. Porém, após algumas conversas, essa medida não é tomada.

Enquanto isso... Loterias cariocas

O caso da Loterj, a loteria do Rio de Janeiro, e o envolvimento com o ex-servidor da Casa Civil Waldomiro Diniz mandam Cachoeira à cadeia de novo. Ele foi para as grades em 4 de maio de 2018, mas por pouco tempo. No entanto, a Justiça dá mais liberdade ao bicheiro em 21 de agosto. Ele não precisa sequer usar tornozeleira eletrônica e ainda pode viajar se quiser.

Capítulo IV - A aposentadoria

  • Fui! (05.nov.2018)

    Depois de ficar de licença-médica desde 2017, o desembargador Mário César Ribeiro se aposenta. Em 15 de novembro, o juiz Leão deixa o gabinete. Ninguém sabe quem assume. "Os processos do acervo do magistrado poderão ser assumidos por um membro mais antigo que manifestar interesse", informou a assessoria do TRF1.

  • Reciclagem? (Nov.2018)

    O processo já tem dois votos de uma relatora, Rogéria Debelli, e um revisor, Ney Bello. Duas fontes experientes do caso disseram ao UOL que é possível "aproveitar" o voto da juíza Rogéria, fazer adaptações de acordo com o convencimento do novo magistrado, uma espécie de "reciclagem". Isso apressaria bastante o trabalho, mas ninguém sabe se será feito.

  • E agora? (Nov.2018)

    O julgamento sai antes do fim deste ano? Segundo as fontes do UOL, seria possível julgar o caso até dezembro se houver um esforço concentrado e aproveitamento de parte dos votos. Mas a assessora do tribunal avisou em nota para a reportagem: "Não existe previsão de julgamento".

Epílogo - Enterro definitivo?

O presidente do TRF-1, Carlos Eduardo Moreira, não quis dar entrevista sobre os motivos da demora. A assessoria do tribunal não informou o motivo da licença médica que tirou Mário César do tribunal por tanto tempo antes de ele se aposentar. Carlinhos Cachoeira não quis conversar com o UOL. Mas seu advogado, Nabor Bulhões, disse à reportagem que o ritmo do processo é “regular e razoável”, considerando-se a complexidade do caso, o fato de serem oito réus e a quantidade de procedimentos criminais que chegam todos os meses ao tribunal.

Ele disse que, além de não haver provas de que o bicheiro cometeu corrupção, já pediu a anulação de todos os grampos telefônicos usados no processo. Para isso, Nabor se vale de decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou que as interceptações que flagraram conversas de Cachoeira com o então senador Demóstenes Torres (ex-DEM-GO) foram ilegais porque uma autoridade com foro privilegiado foi grampeada sem autorização do STF. Segundo a acusação, o bicheiro pagava propina ao político.

Essa decisão judicial livrou Demóstenes de todos os processos que ele respondia no caso. Ele foi cassado do mandato em 2012 e tornou-se “ficha suja”. O STF ainda o converteu em “ficha limpa” novamente e ele tentou eleger-se deputado federal este ano, mas não teve nas urnas o mesmo sucesso obtido nos tribunais.

Quando finalmente o julgamento no TRF1 for realizado, Cachoeira e os demais réus sem foro privilegiado vão conseguir convencer os magistrados que a “regra Demóstenes” também vale para eles? Se sim, será o enterro definitivo da Operação Monte Carlo. Os desembargadores da 3ª Turma do tribunal são Ney Bello, Mônica Sifuentes e o substituto da vaga aberta pela aposentadoria de Mário César Ribeiro. Esse trio vai anular o processo? “Tudo é possível”, admite o procurador Hélio Telho, em entrevista ao UOL. Para ele, as provas são “robustas” e a única chance de Nabor e dos outros advogados é invalidar os grampos. Se os desembargadores considerarem válidas as escutas, é preciso analisar o conteúdo dessas acusações. Os três vão condenar ou absolver o bicheiro e os demais réus? Se condenarem, vão aumentar ou reduzir as penas de prisão? Será preciso ver a nova série de passos deste complicado julgamento.

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